MARTINHO COSTA
PAULA NOBRE
Martinho Costa (Fátima, 1977) vive e trabalha em Lisboa. Licenciado em Artes-Plásticas – Pintura, pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, em 2002. Em 2003 completa o Mestrado em Teoria y Prática de las Artes Plásticas Contemporâneas na Universidad Complutense de Madrid.
O seu trabalho em pintura reparte-se sobre múltiplos suportes que vão desde a pintura de atelier sobre tela, ao fabrico de livros de pintura pintados em edições únicas, bem como em intervenções pictóricas no espaço exterior. Estes vários suportes sobre os quais tem vindo a multiplicar a sua prática artística, têm em comum o uso de imagens prévias que servem de modelos à sua pintura. Trata-se de um processo de transformação de motivos que nos rodeiam na atualidade, a partir de um ponto de vista que tem em conta uma investigação da larga história da arte. Tentando atualizar os temas maiores e géneros que configuram a densa tradição da pintura.
É representado por Salgadeiras Arte Contemporânea (Lisboa) e pela Galería Silvestre (Madrid).
Por Paula Nobre
PN: As tuas exposições Forte e Contraforte com curadoria de Frederico Vicente, referem-se a duas instalações site-specific que formam um díptico. Assim sendo, a exposição no espaço A-Space, em Lisboa, correspondeu a uma das partes que existiu na relação com a outra parte, que é a exposição Contraforte, ainda a decorrer no Centro Cultural de Cascais, até ao dia 18 de maio.
Assumindo que estamos perante uma curadoria que procura estabelecer um diálogo entre a pintura (díptico) e a arquitetura (Forte e Contraforte), como é que o devemos entender, sabendo que ambas as exposições têm um lugar e um tempo distintos e de que modo se manifesta nas arquiteturas Forte e Contraforte?
MC: As exposições Forte e Contraforte assentam numa ideia de base, sobre mostrar a pintura. Criar um dispositivo de exibição que não dependa das paredes para existir. Então, foi criado para estas duas exposições um sistema, previamente planeado, em computador. A partir das plantas dos espaços, organizaram-se as pinturas umas nas outras, aparafusaram-se e encaixaram-se, criando paredes autónomas para habitarem estas arquiteturas. O Frederico (curador) chama-lhes, com muita propriedade, “paredes autoportantes”. Em Lisboa, a exposição chamava-se Forte e era uma exposição mais voltada para dentro. Portanto, era um espaço encerrado, um espaço mais fechado. Em Cascais, tu tens uma disposição, dessas tais “paredes autoportantes” ou “pinturas autoportantes” mais aberta, provocando, de alguma maneira, um espaço mais fluído.
PN: As pinturas de dimensões variáveis, autossustentadas e articuladas entre si, criando um outro espaço dentro do espaço, parecem sugerir ao espectador caminhante um dinâmico jogo visual entre frente e verso. As telas pintadas com as cores e as formas do mundo visível na frente, as grades de madeira, os títulos, a assinatura do artista, a data de execução da pintura e todos os materiais de fixação e apoio no verso, parecem manifestar a referida natureza “autoportante”.
Fala-nos deste termo na ligação à tua prática enquanto pintor.
MC: As pessoas, a partir da experiência da exposição, constroem aquilo que quiserem. A mim, interessam-me coisas muito práticas, que é, por exemplo, a pessoa entrar no espaço de exposição e, em vez de ver as telas de frente, ver a parte de trás. E, de alguma maneira, ter que fazer um percurso para finalmente encontrar a imagem. Essa ideia de percurso ou deambulação, para mim, é muito importante, mais do que algum outro conteúdo mais específico ou metafórico. A pintura vê-se com o corpo, mas isto também não é nada de novo. Os minimalistas dos anos 70 fazem exatamente as esculturas de acordo com o observador. São objetos criados para o observador e o seu corpo. Tanto que até o célebre crítico Michael Fried desenvolveu a ideia de “teatralidade” a partir daí. No que foi entendido como uma espécie de crítica ao minimalismo. Portanto, a mim interessa-me muito essa ideia de ver a pintura com o nosso corpo todo. Por exemplo, a altura de dois metros destas paredes que se mantém ao longo das duas exposições é escolhida para a altura do nosso olhar. Tu tens que andar pela pintura. Tens que deambular, provocando um percurso pelas imagens. Para que nesse processo ativo possas ver aquilo que te interessa e possas excluir aquilo que não te interessa tanto. Quase como se editasses tu a tua exposição. Há uma ideia de mergulho ou imersão que, para mim é muito importante. E estas construções respondem muito à maneira como eu trabalho com a pintura: o desejo de querer pintar tudo aquilo que vejo. E talvez tenha encontrado neste dispositivo uma forma de materializar isso. E isso pega, por exemplo, com o Salon do séc. XIX, aquele dispositivo de montagem de pinturas a cobrir todo o espaço da parede, uma saturação que é assumida e inevitável. O meu Forte e Contraforte foram construídos exatamente para provocar essa saturação. Quase como se fosse um arquivo de imagens tornado realidade.
PN: Na tua obra, estamos perante um mundo diarístico, sem hierarquias ou categorizações. No verso das telas, imaginamos os lugares, as ações e as coisas sugeridas pelos títulos, como “Fragas de S. Simão” ou “Painel de Azulejos”, que, na frente, se revelam pela tua mão expressando uma certa gestualidade que, por sua vez, denota uma forte energia, “frenética”, segundo o curador, que penso estar muito ligada a ti e à forma como tu trabalhas.
Como canalizas esta energia na tua pintura?
MC: Eu não penso muito em energia, ou seja, a mim o que me move é mais a curiosidade. A curiosidade é aquilo que está, um bocadinho, por detrás destas duas exposições. Tem origem na exposição Casulo em Figueiró dos Vinhos, onde eu testei uma estrutura parecida com estas, em 2024. Queria muito ver como ficava e o que acontecia às pinturas e ao espaço que as acolhia. E é essa curiosidade, se quiseres, talvez possas chamar-lhe energia, que me leva a experimentar as soluções agora das exposições Forte e Contraforte. Eu queria arriscar e encontrámos no A-Space, em Lisboa e na Fundação D. Luis I, em Cascais, os espaços que nos possibilitaram fazer estas duas variações das paredes de pintura. Sem nos preocuparmos muito com as consequências práticas de uma exposição... como é recebida, como se vende… sei lá!
PN: Podemos observar em Forte uma pintura do Pavilhão do Realismo do pintor Gustave Courbet que, em 1855, num gesto ousado e inovador, resolveu montar a sua exposição realista muito perto da exposição oficial.
Sentes alguma empatia pela ousadia e “inquietação” sobre o “desejo realista” do Courbet?
MC: Sinto vontade de fazer as coisas. Essa rebeldia, não sei... Se reparares, são pinturas a óleo que representam coisas do dia a dia. Elas estão mostradas, se calhar, de uma maneira mais provocadora. São muitas pinturas porque correspondem, um bocado, a essa necessidade de estar continuamente a gerar qualquer coisa. Na verdade, eu sinto permanentemente estar a começar do zero, movido pela curiosidade de ver como as coisas ficam quando são transformadas em pintura. Talvez essa energia ou essa vontade, que as faz acontecer, seja o desejo puro da pintura. Estas pinturas que eu proponho aqui partem do real. Talvez desse desejo realista semelhante ao de Courbet, que falas. Mas hoje vivemos com um telemóvel no bolso. De maneira que eu começo por fazer fotografias, guardo-as num arquivo e depois seleciono aquilo que se vai pintar ou não. Mas não acrescento nem subtraio nada ao que ficou registado. O que faço, às vezes, são os enquadramentos, mas não tem mais do que isso. Tentando ser fiel à pauta inicial. Talvez essa fidelidade seja algo mais conforme ao realismo feito e postulado por Courbet.
PN: Estas instalações, que formam paredes de malhas pictóricas criam um efeito imersivo pela saturação de imagens pintadas, cujos temas variam entre retratos, naturezas-mortas, paisagens e interiores. Esta experiência assemelha-se a uma espécie de scroll que, por analogia, somos impelidos a fazer através da observação do teu trabalho. Partindo da tua atitude enquanto fotógrafo e pintor, gostava que nos falasses da distinção que fazes entre “olhar a pintura” e “ver pintura”.
Achas que a pintura contribui para uma mais eficaz revelação do mundo?
MC: Eu parto de fotografias porque é prático e é uma maneira muito eficaz de tirar apontamentos da realidade. Eu uso a fotografia um bocadinho como, por exemplo, os apontamentos desenhados do Delacroix, em Marrocos, na sua viagem célebre. E que foram posteriormente a fonte para várias pinturas no seu atelier de Paris. Hoje, provavelmente, com um telemóvel na mão, o pintor tirava umas fotos e depois regressava a casa e no Photoshop criava as suas composições a partir daí. Portanto, eu uso a fotografia um bocado como um caderno de esboços…obviamente estou longe de ser um fotógrafo. Eu gosto muito de fotografia. Gosto muito de fotógrafos. Às vezes, em momentos de crise, sem saber bem o que vou fazer a seguir, vejo mais fotógrafos do que pintores. A fotografia, de alguma maneira, tem um lado prático que a torna muito tentadora. Tu tiras uma foto que levas para o conforto do lar e, a partir dali, podes ver se te interessa ou não. Claro que, idealmente, eu adorava fazer as pinturas ao ar livre, ao vivo sobre o motivo. Isso era incrível! Só que não é prático. É mesmo assim. Temos que ser práticos. Claro que não é a mesma coisa. O olhar da fotografia é diferente do olhar ao vivo. A pintura é feita de um olhar mais demorado, porque o processo do pintor é mais lento. A pintura que me interessa resulta desse olhar para as coisinhas que estão tão à frente dos nossos olhos que nós nem as vemos. E a pintura pode servir para sublinhar esse paradoxo da invisibilidade. Talvez se possa revelar o mundo todo a partir da observação da pequena vida à nossa volta.
Uma pintura é tinta sobre tela. É cor distribuída sobre uma superfície. E, no meu caso, essa operação logística é feita com o gesto da minha mão a comandar pincéis carregados com tintas coloridas estacionadas numa paleta. Esses gestos obedecem a uma pauta que observo num ecrã onde está parada uma fotografia. O prazer da pintura é revelar essa imagem. É ver como a imagem é filtrada através do meu corpo, porque a pintura tem esta dimensão corporal dos gestos da mão sobre a tela. Portanto, eu tenho uma imagem à qual quero responder através da pintura. Eu até posso ser rápido a pintar, mas há uma décalage, muito grande, entre o momento em que faço o instantâneo e a sua revelação, que é sempre lenta. É um prazer observar aquela aparição lenta. De maneira que cada pintura é para mim um prazer renovado. E é isso que me faz estar permanentemente a pintar.
PN: Como é para ti, pintor Martinho Costa, um dia perfeito?
MC: Um dia perfeito é uma pergunta complicada. Mas um dia bom é um dia em que acordo cedo. E vou cedo dar uma volta de bicicleta. Acho que andar de bicicleta é a atividade perfeita para quem gosta de pintura de paisagem! Deslocas-te ao teu ritmo e podes, num raio de 50 km, ver as paisagens à tua volta sempre diferentes e novas ao meu olhar. Se o dia for perfeito, está uma luz ótima e aprecias verdadeiramente a paisagem que se desenrola à tua frente. Nessas viagens, às vezes paro e faço fotografias. Algumas até aparecem, mais tarde, em pinturas. Na parte da tarde, normalmente, vou para o atelier que, no meu caso, está à distância de uma porta de correr. Enquanto estou a pintar, gosto muito de ouvir podcasts ou vídeos no YouTube, principalmente sobre história antiga. É outra viagem, mas no tempo. Ouvir nos headphones outras pessoas a falarem sobre assuntos que interessam é ótimo! Não preciso de silêncio para pintar. Gosto de estar a ouvir outras coisas. Se eu não for dar aulas de pintura em Lisboa, normalmente isto avança até ao início da noite. Um dia perfeito será então um dia de viagens e de pintura!
Paula Nobre tem um percurso profissional repartido entre a curadoria, o ensino das artes e a produção artística. Concluiu o mestrado em Arte Multimédia, na variante de Fotografia, onde desenvolveu uma investigação intitulada Lugares-comuns: a Fotografia como lugar de afetos e a licenciatura em Pintura, ambas na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, tendo, também, feito uma pós-graduação em Curadoria de Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Como curadora, tem colaborado com artistas, destacando a exposição “das cinzas brotam as flores” de Helena Roque, na Biblioteca de Alcântara - José Dias Coelho, Lisboa, em 2025 e participou na produção de conteúdos sobre a Coleção de Arte Moderna, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 2023.