Conversa com Paula Nobre - publicada na Artecapital

 MARTINHO COSTA

PAULA NOBRE



Martinho Costa (Fátima, 1977) vive e trabalha em Lisboa. Licenciado em Artes-Plásticas – Pintura, pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, em 2002. Em 2003 completa o Mestrado em Teoria y Prática de las Artes Plásticas Contemporâneas na Universidad Complutense de Madrid.

O seu trabalho em pintura reparte-se sobre múltiplos suportes que vão desde a pintura de atelier sobre tela, ao fabrico de livros de pintura pintados em edições únicas, bem como em intervenções pictóricas no espaço exterior. Estes vários suportes sobre os quais tem vindo a multiplicar a sua prática artística, têm em comum o uso de imagens prévias que servem de modelos à sua pintura. Trata-se de um processo de transformação de motivos que nos rodeiam na atualidade, a partir de um ponto de vista que tem em conta uma investigação da larga história da arte. Tentando atualizar os temas maiores e géneros que configuram a densa tradição da pintura.

É representado por Salgadeiras Arte Contemporânea (Lisboa) e pela Galería Silvestre (Madrid).



Por Paula Nobre



PN: As tuas exposições Forte e Contraforte com curadoria de Frederico Vicente, referem-se a duas instalações site-specific que formam um díptico. Assim sendo, a exposição no espaço A-Space, em Lisboa, correspondeu a uma das partes que existiu na relação com a outra parte, que é a exposição Contraforte, ainda a decorrer no Centro Cultural de Cascais, até ao dia 18 de maio. 


Assumindo que estamos perante uma curadoria que procura estabelecer um diálogo entre a pintura (díptico) e a arquitetura (Forte e Contraforte), como é que o devemos entender, sabendo que ambas as exposições têm um lugar e um tempo distintos e de que modo se manifesta nas arquiteturas Forte e Contraforte? 


MC: As exposições Forte e Contraforte assentam numa ideia de base, sobre mostrar a pintura. Criar um dispositivo de exibição que não dependa das paredes para existir. Então, foi criado para estas duas exposições um sistema, previamente planeado, em computador. A partir das plantas dos espaços, organizaram-se as pinturas umas nas outras, aparafusaram-se e encaixaram-se, criando paredes autónomas para habitarem estas arquiteturas. O Frederico (curador) chama-lhes, com muita propriedade, “paredes autoportantes”. Em Lisboa, a exposição chamava-se Forte e era uma exposição mais voltada para dentro. Portanto, era um espaço encerrado, um espaço mais fechado. Em Cascais, tu tens uma disposição, dessas tais “paredes autoportantes” ou “pinturas autoportantes” mais aberta, provocando, de alguma maneira, um espaço mais fluído. 



PN: As pinturas de dimensões variáveis, autossustentadas e articuladas entre si, criando um outro espaço dentro do espaço, parecem sugerir ao espectador caminhante um dinâmico jogo visual entre frente e verso. As telas pintadas com as cores e as formas do mundo visível na frente, as grades de madeira, os títulos, a assinatura do artista, a data de execução da pintura e todos os materiais de fixação e apoio no verso, parecem manifestar a referida natureza “autoportante”. 


Fala-nos deste termo na ligação à tua prática enquanto pintor. 


MC: As pessoas, a partir da experiência da exposição, constroem aquilo que quiserem. A mim, interessam-me coisas muito práticas, que é, por exemplo, a pessoa entrar no espaço de exposição e, em vez de ver as telas de frente, ver a parte de trás. E, de alguma maneira, ter que fazer um percurso para finalmente encontrar a imagem. Essa ideia de percurso ou deambulação, para mim, é muito importante, mais do que algum outro conteúdo mais específico ou metafórico. A pintura vê-se com o corpo, mas isto também não é nada de novo. Os minimalistas dos anos 70 fazem exatamente as esculturas de acordo com o observador. São objetos criados para o observador e o seu corpo. Tanto que até o célebre crítico Michael Fried desenvolveu a ideia de “teatralidade” a partir daí. No que foi entendido como uma espécie de crítica ao minimalismo. Portanto, a mim interessa-me muito essa ideia de ver a pintura com o nosso corpo todo. Por exemplo, a altura de dois metros destas paredes que se mantém ao longo das duas exposições é escolhida para a altura do nosso olhar. Tu tens que andar pela pintura. Tens que deambular, provocando um percurso pelas imagens. Para que nesse processo ativo possas ver aquilo que te interessa e possas excluir aquilo que não te interessa tanto. Quase como se editasses tu a tua exposição. Há uma ideia de mergulho ou imersão que, para mim é muito importante. E estas construções respondem muito à maneira como eu trabalho com a pintura: o desejo de querer pintar tudo aquilo que vejo. E talvez tenha encontrado neste dispositivo uma forma de materializar isso. E isso pega, por exemplo, com o Salon do séc. XIX, aquele dispositivo de montagem de pinturas a cobrir todo o espaço da parede, uma saturação que é assumida e inevitável. O meu Forte e Contraforte foram construídos exatamente para provocar essa saturação. Quase como se fosse um arquivo de imagens tornado realidade.


PN: Na tua obra, estamos perante um mundo diarístico, sem hierarquias ou categorizações. No verso das telas, imaginamos os lugares, as ações e as coisas sugeridas pelos títulos, como “Fragas de S. Simão” ou “Painel de Azulejos”, que, na frente, se revelam pela tua mão expressando uma certa gestualidade que, por sua vez, denota uma forte energia, “frenética”, segundo o curador, que penso estar muito ligada a ti e à forma como tu trabalhas. 


Como canalizas esta energia na tua pintura? 


MC: Eu não penso muito em energia, ou seja, a mim o que me move é mais a curiosidade. A curiosidade é aquilo que está, um bocadinho, por detrás destas duas exposições. Tem origem na exposição Casulo em Figueiró dos Vinhos, onde eu testei uma estrutura parecida com estas, em 2024. Queria muito ver como ficava e o que acontecia às pinturas e ao espaço que as acolhia. E é essa curiosidade, se quiseres, talvez possas chamar-lhe energia, que me leva a experimentar as soluções agora das exposições Forte e Contraforte. Eu queria arriscar e encontrámos no A-Space, em Lisboa e na Fundação D. Luis I, em Cascais, os espaços que nos possibilitaram fazer estas duas variações das paredes de pintura. Sem nos preocuparmos muito com as consequências práticas de uma exposição... como é recebida, como se vende… sei lá!


PN: Podemos observar em Forte uma pintura do Pavilhão do Realismo do pintor Gustave Courbet que, em 1855, num gesto ousado e inovador, resolveu montar a sua exposição realista muito perto da exposição oficial. 


Sentes alguma empatia pela ousadia e “inquietação” sobre o “desejo realista” do Courbet? 


MC: Sinto vontade de fazer as coisas. Essa rebeldia, não sei... Se reparares, são pinturas a óleo que representam coisas do dia a dia. Elas estão mostradas, se calhar, de uma maneira mais provocadora. São muitas pinturas porque correspondem, um bocado, a essa necessidade de estar continuamente a gerar qualquer coisa. Na verdade, eu sinto permanentemente estar a começar do zero, movido pela curiosidade de ver como as coisas ficam quando são transformadas em pintura. Talvez essa energia ou essa vontade, que as faz acontecer, seja o desejo puro da pintura. Estas pinturas que eu proponho aqui partem do real. Talvez desse desejo realista semelhante ao de Courbet, que falas. Mas hoje vivemos com um telemóvel no bolso. De maneira que eu começo por fazer fotografias, guardo-as num arquivo e depois seleciono aquilo que se vai pintar ou não. Mas não acrescento nem subtraio nada ao que ficou registado. O que faço, às vezes, são os enquadramentos, mas não tem mais do que isso. Tentando ser fiel à pauta inicial. Talvez essa fidelidade seja algo mais conforme ao realismo feito e postulado por Courbet.



PN: Estas instalações, que formam paredes de malhas pictóricas criam um efeito imersivo pela saturação de imagens pintadas, cujos temas variam entre retratos, naturezas-mortas, paisagens e interiores. Esta experiência assemelha-se a uma espécie de scroll que, por analogia, somos impelidos a fazer através da observação do teu trabalho. Partindo da tua atitude enquanto fotógrafo e pintor, gostava que nos falasses da distinção que fazes entre “olhar a pintura” e “ver pintura”. 


Achas que a pintura contribui para uma mais eficaz revelação do mundo?


MC: Eu parto de fotografias porque é prático e é uma maneira muito eficaz de tirar apontamentos da realidade. Eu uso a fotografia um bocadinho como, por exemplo, os apontamentos desenhados do Delacroix, em Marrocos, na sua viagem célebre. E que foram posteriormente a fonte para várias pinturas no seu atelier de Paris. Hoje, provavelmente, com um telemóvel na mão, o pintor tirava umas fotos e depois regressava a casa e no Photoshop criava as suas composições a partir daí. Portanto, eu uso a fotografia um bocado como um caderno de esboços…obviamente estou longe de ser um fotógrafo. Eu gosto muito de fotografia. Gosto muito de fotógrafos. Às vezes, em momentos de crise, sem saber bem o que vou fazer a seguir, vejo mais fotógrafos do que pintores. A fotografia, de alguma maneira, tem um lado prático que a torna muito tentadora. Tu tiras uma foto que levas para o conforto do lar e, a partir dali, podes ver se te interessa ou não. Claro que, idealmente, eu adorava fazer as pinturas ao ar livre, ao vivo sobre o motivo. Isso era incrível! Só que não é prático. É mesmo assim. Temos que ser práticos. Claro que não é a mesma coisa. O olhar da fotografia é diferente do olhar ao vivo. A pintura é feita de um olhar mais demorado, porque o processo do pintor é mais lento. A pintura que me interessa resulta desse olhar para as coisinhas que estão tão à frente dos nossos olhos que nós nem as vemos. E a pintura pode servir para sublinhar esse paradoxo da invisibilidade. Talvez se possa revelar o mundo todo a partir da observação da pequena vida à nossa volta. 

Uma pintura é tinta sobre tela. É cor distribuída sobre uma superfície. E, no meu caso, essa operação logística é feita com o gesto da minha mão a comandar pincéis carregados com tintas coloridas estacionadas numa paleta. Esses gestos obedecem a uma pauta que observo num ecrã onde está parada uma fotografia. O prazer da pintura é revelar essa imagem. É ver como a imagem é filtrada através do meu corpo, porque a pintura tem esta dimensão corporal dos gestos da mão sobre a tela. Portanto, eu tenho uma imagem à qual quero responder através da pintura. Eu até posso ser rápido a pintar, mas há uma décalage, muito grande, entre o momento em que faço o instantâneo e a sua revelação, que é sempre lenta. É um prazer observar aquela aparição lenta. De maneira que cada pintura é para mim um prazer renovado. E é isso que me faz estar permanentemente a pintar.



PN: Como é para ti, pintor Martinho Costa, um dia perfeito?


MC: Um dia perfeito é uma pergunta complicada. Mas um dia bom é um dia em que acordo cedo. E vou cedo dar uma volta de bicicleta. Acho que andar de bicicleta é a atividade perfeita para quem gosta de pintura de paisagem! Deslocas-te ao teu ritmo e podes, num raio de 50 km, ver as paisagens à tua volta sempre diferentes e novas ao meu olhar. Se o dia for perfeito, está uma luz ótima e aprecias verdadeiramente a paisagem que se desenrola à tua frente. Nessas viagens, às vezes paro e faço fotografias. Algumas até aparecem, mais tarde, em pinturas. Na parte da tarde, normalmente, vou para o atelier que, no meu caso, está à distância de uma porta de correr. Enquanto estou a pintar, gosto muito de ouvir podcasts ou vídeos no YouTube, principalmente sobre história antiga. É outra viagem, mas no tempo. Ouvir nos headphones outras pessoas a falarem sobre assuntos que interessam é ótimo! Não preciso de silêncio para pintar. Gosto de estar a ouvir outras coisas. Se eu não for dar aulas de pintura em Lisboa, normalmente isto avança até ao início da noite. Um dia perfeito será então um dia de viagens e de pintura! 




Paula Nobre tem um percurso profissional repartido entre a curadoria, o ensino das artes e a produção artística. Concluiu o mestrado em Arte Multimédia, na variante de Fotografia, onde desenvolveu uma investigação intitulada Lugares-comuns: a Fotografia como lugar de afetos e a licenciatura em Pintura, ambas na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, tendo, também, feito uma pós-graduação em Curadoria de Arte na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Como curadora, tem colaborado com artistas, destacando a exposição “das cinzas brotam as flores” de Helena Roque, na Biblioteca de Alcântara - José Dias Coelho, Lisboa, em 2025 e participou na produção de conteúdos sobre a Coleção de Arte Moderna, na Fundação Calouste Gulbenkian, em 2023. 



Ergo Forte, de Martinho da Costa, no (A)Space - Carla Carbone (revista online: umbigo)

 O trajeto da exposição, Ergo Forte, na galeria (A)Space, faz-se, primeiramente, por meio de um vislumbre inicial sobre o avesso de uma pintura, demonstrando, segundo o comissário da exposição, Frederico Vicente, a intenção expositiva de sair do posicionamento habitual da pintura, e a sua natural fixação sobre a parede.

Num percurso desvelado por uma sucessão de pinturas, dominado por grande fulgor pictórico, e mestria na execução, as pinceladas a óleo, do artista Martinho Costa, são desferidas sobre a tela, de modo lânguido, e suculento.

As várias pinturas, autoportantes, juntam-se umas às outras, formando um habitáculo, ou uma estrutura que se enleia, ou engasta, em modo de trama, com o ambiente da galeria. O próprio tecto aparenta uma similitude com o efeito quadriculado das pinturas, que se amparam e encetam, num jogo intrincado de relações, reforçando a qualidade site specific, pretendida na exposição de Martinho.

O artista está atento ao pormenor.

A exposição compreende um estreito elo com o espaço da galeria, com as suas paredes carcomidas ou pintadas de fresco, as portas fechadas, os nichos, os recantos, as cavidades.

Ao longo da estrutura, feita de pinturas posicionadas umas sobre as outras, ou lado a lado, despontam aberturas, através das quais se pode espreitar, ou, por detrás delas, ver surgir ainda mais pinturas, ou antes, mais avessos de pinturas, com escritos a vermelho, incluindo datas, títulos, ou potenciais lugares onde as obras podem ter sido realizadas.

Nesta cadência, vamos descobrindo, a ligação existente entre elas e as suas antinomias.

Na sua frágil sustentação, descobrimos pinturas de paisagem, pequenas grutas (talvez), unidas a outras pinturas que nos revelam azulejos de parede, seguidos de reboco caído, ou ainda, telas pequenas com elementos vegetalistas, junto a pinturas que representam o interior de um museu, onde os visitantes são representados, incógnitos, a apreciar obras de arte.

Também são representadas na tela jardins em grande escala. Neles encontram-se, escondidos, vestígios do urbano, e da vida banal do quotidiano, como mangueiras, estacas, pilares grafitados. Ânsia do artista, de representar tudo.

Uma pintura de um baldio é ladeada por outras telas mais pequenas. Pormenores vegetalistas ressurgem, assim como pessoas representadas corcovadas a trabalhar a terra, à mistura com imagens de mobiliário moderno: cadeiras estofadas, a denunciar um tempo já perdido, de crença industrialista.

Na sala mais ampla, um epítome impõe-se sobre uma tela: Fuck You I Won’t Do What you Tell Me. É a frase que nos dá as boas-vindas à entrada da segunda estrutura arquitectónica, habitáculo, da exposição.

Na armadura exterior do habitáculo, sustentado por pinturas, encontramos visíveis, e disponíveis, os seus avessos. Cobertos por palavras escritas, à mão, a cor azul.

Por entre os títulos, e datas de obras, podemos espreitar e ver o que a estrutura deixa entrever através das suas aberturas. Por dentro, anunciam-se novas telas. Na exposição de Martinho são inúmeras – mais de 60. Contornando a grande estrutura murada por telas, entramos para o interior, e somos arrebatados com tanto fulgor na cor, e forma voluptuosa, a que nos tem habituado o artista.

Como que, num jardim das delícias e dos prazeres terrenos, somos açoitados por uma poderosa comunhão de telas que nos causam espanto e deleite. O interior assalta-nos com um conjunto de telas dispostas na vertical, e relembra-nos os velhos salões de arte em Paris. Não é por acaso que Frederico Vicente[1] menciona o Salão Oficial da Exposição Universal de Paris, 1855, Courbet, e o Pavilhão do Realismo, em 1855.

Uma tela apresenta uma estatueta de um cão. Dourada e esfíngica, permanece hirta, em contraste com um fundo coberto por uma parede de azulejos setecentistas.

De seguida, deparamo-nos com uma outra tela a apresentar o interior de uma casa clássica. Outras pinturas vão sucedendo, algumas apresentam padrões, configurações quase abstratas, pessoas em museus antigos, a tirar fotografias, vegetação, apontamentos arquitectónicos, grades de janelas carcomidas, paredes de reboco caído (novamente), e por aí em diante.

O pendor arquivístico imagético de Martinho, reclina para um conjunto de referências que se justapõem lado a lado, num percurso, e numa jornada que não se apresenta de modo algum linear, quer em narrativas quer em sentidos. No seu discurso, e na sua lógica expositiva, poderia ser, como Eisenstein descreveria, e segundo Georges Didi-Huberman, uma “montage of attractions”.

Um processo associativo de imagens, que se estende sem associação aparente, um conjunto de arbitrariedades, uma revivescência melancólica de gostos artísticos antigos, em comunhão com os novos, evocando uma história de arte em constante mutação, e permanente análise. Uma abordagem, um tanto ou quanto lacónica. Um ensaio de cultura, uma Kulturwissenschaft.

A polaridade de imagens e estilismos vários, o movimento e ritmo que impõem ao longo da exposição, é um dos seus maiores ganhos e persistências.

Toques warburguianos parecem eclodir, em cada tom, cada forma, cada recanto da exposição. Uma biblioteca, ou laivos de uma antropologia visual[2], quão câmara de curiosidades, Wunderkammers, numa sucessão centrífuga[3]quasi cinemática, muito deleuzianada, e cinematográfica[4].

Numa consistência e compulsão do pathos do movimento[5], ou pathosformel[6], numa reprodutividade quase benjamininana[7],

Temporalidades, anacronismos, feitos de cortes, montagens, saltos, e de fósseis sobreviventes[8], como diria Didi-Hubermann.

A exposição está patente no (A)Space até dia 22 de março.

 

 

[1] Referência à Folha de Sala da exposição Ergo Forte.

[2] DIDI-HUBERMAN, Georges. “Foreword. Knowledge: Movement (The man who spoke to butterflies)”. In: MICHAUD, Philippe-Alain. Aby Warburg and the image in motion. Tradução para o inglês de Sophie Hawkes. Nova York: Zone Books, 2007, pp. 7-19.

[3] Ibidem

[4] Ibidem

[5] Ibidem

[6] Ibidem

[7] Ibidem

[8] Ibidem

CASA Exposição - Gonçalo M. Tavares

 CASA Exposição

MARTINHO COSTA e RUI MACEDO



gonçalo m. tavares


Dois artistas no mesmo espaço, exposição conjunta. Mas aqui muito mais do que isso: dois artistas com o mesmo modelo; um modelo clássico da arte; não é um corpo humano, mas é um corpo, não é natureza, mas também o é, claro. É um modelo aparentemente imóvel, mas com uma outra qualquer nudez paralela à nudez do corpo humano, nudez que vem desse espaço não ocupado, não atulhado com objetos que não o deixam respirar.

O modelo é, pois, a casa da Avenida em Setúbal; dois artistas olham para a mesma casa parada e vêem nela diferentes movimentos. O que é um criador? É alguém que, diante do mesmo, vê outra coisa. Dois artistas, MARTINHO COSTA e RUI MACEDO, diante do mesmo vêem e pensam coisas distintas. 

E de imediato, nos lembramos de Bachelard, e do seu livro “A Poética do Espaço”. A casa, qualquer casa, qualquer boa e forte casa, é, em primeiro lugar, dizia Bachelard, um abrigo do devaneio, um abrigo para a imaginação. Depois de ser abrigo para a chuva e para o frio, depois de ser abrigo e protecção em relação a eventuais animais perigosos ou a inimigos, depois de ser abrigo de tempestades e do céu que por vezes é demasiado negro e incerto, a casa é também abrigo daquilo que é mais alto: a imaginação e a criação. 

Martinho Costa e Rui Macedo estão assim abrigados nesta bela Casa da Avenida; e o olho que está abrigado, protegido, em vez de, com o conforto da protecção, adormecer, fica sim, pelo contrário, mais atento, mais excitado. E é esse olho criativo que os dois artistas lançam sobre esta belíssima casa. A casa que serve de abrigo serve também de objecto de criação, ponto de partida do devaneio. E eis o máximo a que pode ambicionar uma casa: nela não apenas temos a tranquilidade que permite a imaginação livre, mas é ela mesmo o objecto dessa imaginação.

Nas fortíssimas pinturas a óleo de Martinho Costa temos esse traço que vai ao pormenor na cor que cintila, mesmo quando é a sombra a ser retratada; na escada, nos Dois Degraus, na magnífica Poltrona, nas janelas e suas sombras e ângulos – em todas as pinturas há a sensação de que um qualquer animal invisível ali anda, sem parar. E é esse animal invisível que por ali caminha que nos puxa os olhos para o seguirmos. Seguimos o quadro, isto é, fazemos com os olhos um trajecto pela tela, não como quem segue algo parado, mas sim como quem observa um irrequieto organismo vivo. Só o que é vivo se apodera da nossa atenção.

Não se trata apenas de imaginar quem se sentou na poltrona ou no sofá ou de imaginar quem viu os azulejos e quem foi visto, na rua, a partir daquela janela. Nos dois criadores temos isto, que é o essencial:  um sofá, uma planta, pequenos pormenores que sejam, assumem o papel de personagens: as coisas têm uma história - não apenas os objectos, mas também a própria estrutura da casa.

Dois artistas distintos, claro, mas também vizinhos, criadores que se vêem de uma janela próxima. 

As obras de Rui Macedo, por seu turno, nesta Exposição são resultado de diferentes técnicas, de modos distintos do mesmo artista se aproximar do mundo. Temos composições a óleo sobre tela, mas também intervenções a óleo e resina sobre contraplacado escavado - e ainda a mistura destes dois materiais de receção, digamos assim, materiais de recepção do movimento e pensamento do criador. Nas muitas vezes intrigantes obras de Rui Macedo, na potência destas obras, adivinhamos alguns espaços, alguns cantos que são centrais e claros na pintura de Martinho Costa. Mas vemos também, entre muitas outras coisas, nas obras de Rui Macedo, um olhar que do objecto ou modelo, que é a casa da Avenida, avança para outros pontos, ou para outras quase-metáforas, se assim quisermos - como na obra Pintura-Embalagem onde, subitamente, entre diferentes interpretações podemos ler essa ideia central na arte contemporânea de uma obra que é também embalagem; de uma obra que também ela cobre algo, eventualmente uma outra obra. Em suma, aquilo que esconde algo pode ser também essencial (podemos pensar num esconderijo que é tão importante como aquilo que é nele escondido) e, de imediato, nos devaneios a que qualquer pessoa tem direito, vejo a ideia de uma pintura-embalagem que se pode levar de um lado para o outro como quem leva o fragmento de uma casa sem a mutilar, sem sequer a perturbar.

E é também isto que é fortíssimo nestes dois artistas: não roubam a alma de um espaço, nem sequer de um dos seus fragmentos. São obras que partem da Casa da Avenida e acrescentam a essa casa algo mais. Balzac, recorde-se, receava que as fotografias lhe roubassem a alma, e brincou com essa ideia; e num tempo histórico em que fotógrafo e fotografado são quase sempre o mesmo, a pintura, pelo prolongamento do tempo de vigília criativa sobre um pedaço do mundo, ganha uma outra força, uma força necessária.

O trabalho do artista é assim, em parte, introduzir um outro tempo no olhar dos humanos. E é isso que fazem Martinho Costa e Rui Macedo: uma multidão poderá tirar fotografias à casa da avenida, às suas janelas ou degraus, mas um artista não passa pelas coisas para delas levar um recuerdo, escava-as sim. Não tem pressa, tem curiosidade. Por mim, troco cem mil pressas por uma única curiosidade. 

E é isso que aqui vemos nesta exposição: dois criadores, muitas vezes olhando exactamente para o mesmo pormenor - azulejos, ou degraus - fazem duas obras bem distintas, mostrando dois dos muitos caminhos possíveis diante do mesmo modelo. Duas belas curiosidades, portanto, é aquilo que aqui temos.

O que talvez seja ainda mais de realçar, nesta exposição, é a forma como se conseguiu introduzir, de forma delicada, alma nos objectos, pormenores e cantos. Ninguém levou a alma da Casa da Avenida consigo para casa, deixando-a sozinha e puramente material. O notável projecto desta exposição é talvez, então, afinal de contas, também espiritual. No trabalho dos dois artistas, pequenos fragmentos da Casa da Avenida ganharam alma - sofá com alma, degraus com alma, azulejos com alma. 

Todos sabemos que há uma luz que se rouba e suga, deixando tristes as coisas atrás de si, e há depois uma outra luz, completamente distinta, que se doa e se oferece às coisas com que nos cruzamos. Nesta exposição, Martinho Costa e Rui Macedo, nada roubam de imaterial e, pelo contrário, muito acrescentam. 

Um trabalho amoroso, portanto, o que foi feito na Casa da Avenida pelos artistas Martinho Costa e Rui Macedo. Como se cada um deles dissesse: venho dar-te um outro ponto de vista, uma nova luminosidade, um outro brilho; venho, no fundo, dar-te mais tempo, o bem mais precioso, para que demores mais diante de cada canto desta casa. Trata-se, pois, de uma dupla doação: aos visitantes e ao espaço.

Pinturas sem horizonte - João Pinharanda

As pinturas de Martinho Costa fazem-se tão perto dos motivos que são, quase sempre, pinturas sem horizonte. 

Tomadas de perto, sobre pormenores de uma realidade maior que raramente se revela, são também pinturas que iludem as suas dimensões (pequenas, médias ou grandes) para aspirarem a uma escala que as faria coincidir com o motivo - como o mapa que Borges fez coincidir com a realidade do território que registava. Mas, no processo de Martinho Costa não se trata de desenvolver um projecto totalitário de apreensão (mais no sentido da captura que do conhecimento) da realidade; trata-se antes de um projecto que, no seu desejo de ”pintar tudo”, se apresenta como modalidade de resgate da realidade.


Tempo houve em que o artista, nas suas Pinturas ao Ar Livre, ironizava sobre a tradição naturalista e “ar librista” pintando directamente sobre paredes, muros ou outros materiais de construção (como pedras de calçada) que integravam os próprios motivos das pinturas. Martinho Costa afastou-se depois da materialidade exacerbada que essa prática conferia às imagens, muitas delas pintadas em lugares de difícil acesso e deixadas ao abandono e degradação natural, nos suportes imóveis onde tinham sido criadas. Isso não afastou Martinho Costa da tarefa principal que a sua pintura propõe: a valorização do que, em nosso redor, tende para a invisibilidade, para o anonimato, para a perda. Pelo contrário, dando-lhe mais mobilidade permitiu-lhe desenvolver mais vastos mapeamentos do mundo exterior numa profusão de imagens que depois apresenta em diversas soluções de dimensão, montagem e formato. 

Em séries mais recentes, quando pinta sobre uma superfície dobrada em ângulo recto, cria uma esquina (uma dobragem) que descoincide com a realidade que representa, mas que confere realidade tridimensional ao ilusionismo das imagens planas. Também quando compõe a esquina interior de uma sala de exposições, criando uma grelha de dezenas de pequenas imagens, como se fossem tumbnails, Martinho Costa mima a estratégia de apresentação de um portfolio de artista (do seu portfolio) numa página de motor de busca aberta num écran de computador. Martinho Costa estabelece assim um atlas de imagens banais ou que poderemos mesmo classificar de sub-normais devido à irrelevância poética, literária, visual que as podem justificar. Ao executar verdadeiros raids, apresentando-se com uma visão de 360º, limpando o campo minado do que é belo e relevante no mundo, o artista concentra-se apenas no resto (ou nos restos) da realidade. 

 

Na verdade, estas pinturas são fotografias realistas pensadas desde início como pinturas - o registo inicial perde-se ou é rejeitado no processo de criação pictural. Pensadas como pinturas / para serem pinturas elas seriam insignificantes enquanto fotografias. E é, em simultâneo, a partir e contra essas fotografias (ou a sua prática), a partir de um referente (a fotografia mecânica ou digital) que se desacredita que Martinho Costa recupera quer a dignidade da pintura quer a dignidade dos motivos indignos que escolhe. 


Algumas pinturas expõem de modo especialmente claro o que dizemos: Árvore, Portão, Portão Verde, Pano, por exemplo, representam a sua tendência para o close-up que revela o pormenor sem dar a compreender o todo. Os títulos, de sabor também naturalista, parecem acentuar o que as imagens mostram. De facto, são títulos falsamente descritivos, incompletos ou desviados; nunca dizem o mais importante, nunca focam o que é a centralidade da imagem: a Árvore é, afinal, um ser frágil, juvenil e descentrado; o Portão, que ocupa a totalidade da superfície como um mero papel de parede, e dá nome à pintura, é visualmente menos importante que o estreito ferro dobrado que corta a imagem com uma linha oblíqua e a sua sombra, que é onde o nosso olhar imediatamente se concentra; o Portão Verde, mantém as mesmas características de fuga, surgindo ainda como fragmento dentro do fragmento - elemento também deslocado do cento de uma parede inacabada, sai do nosso campo de visão deslizando pelo lado direito imagem; as mesmas constatações valem para o modo como Pano nos é apresentado.


Há ainda pinturas que, mantendo características das anteriores, podem funcionar como testemunho maior ou manifesto de todo o processo e projecto de trabalho de Martinho Costa: Sol Negro, Falsas Montanhas, , por exemplo. Desejo que, ao encadeá-las assim, a sua posição, não signifique qualquer hierarquização - todas três me parecem de igual importância: a tampa da objectiva que (vista? encontrada? atirada? inadvertidamente caída?), no chão, cifra (mas ao mesmo tempo desvenda) a tarefa de registo fotográfico a que se dedica o pintor; a falsa paisagem de montanhas (evidentemente “sem horizonte”) composta por um monte de papéis amarrotados, amontoados no chão e onde os jogos de ilusão e escala são decisivos; finalmente, o lixo que uma pá doméstica de cabo recolhe como se recolhesse algo de precioso, merecedor de ser representado. Note-se que todas estas coisas (e também o Pano, já referido) são “coisas do chão”: vistas, encontradas, apanhadas (?), representadas em terra solta, semeada de ervas daninhas, em cimentos sujos e mal tratados, perto de muros mal conservados, portões ferrugentos... É a pintura que eleva o estatuto destes motivos.


No conjunto de imagens que nos interessou destacar apenas a pintura Baliza se apresenta integra e central ao nosso olhar. Talvez possamos pensar que ela é metáfora da rede que, receptáculo e armadilha, passiva e activa, acolhe / captura o nosso olhar para o seu interior, para a interminável teoria de imagens que Martinho Costa vai desdobrando à nossa frente em scroll down. De qualquer modo, há outra uma dupla leitura: através das sombras da baliza que avançam em nossa direcção toda a estrutura se reverte e se expande-se até ao campo físico que ocupamos (ou seja, para fora da pintura). Não sabemos se o faz como ameaça se como convite.


João Pinharanda

Paris, 8 de Março de 2020

A fascination for the visible by Vanessa H. Sánchez in conversation with Martinho Costa

The best way to explain what Martinho Costa presents us in his new exhibition Testigo (Witness) is with his own words: "It must be said that the exhibition is not about Spain or the theme of landscape nor travel" ... But this exhibition begins with a trip indeed; a trip that he does not want to refer to, for all that the philosophy of the trip entails, or does not want to talk about how the artist embodies the figure of the traveller, a seeker with no return, or maybe he does not want to see himself as a tourist, as it is described by Paul Bowels in "The protective sky**", where the tourist will travel the world as a collector of sensations, being always aware of his return, because this is not what Martinho Costa wants to talk about. Because this exhibition is not about the trip.

Testigo emphasizes the particularity of painting as the discipline of the gaze par excellence. From a slow, in-depth look, which does not pursue moral discourses or any other kind of narrative, we will not find anything but the pure act of presenting things made painting; a kind of look that makes you remain analytical. As the fifteenth century treatise "Della Pittura" by Leon Battista Alberti introduces us to a new era of painting, breaking with the old medieval system and dismantling the concept of genius in favour of the virtues of diligence and dedication involved in visual appearances, Martinho Costa brings these concepts to the contemporary, to understand what we see in the pause of the analysis, and to see and understand things because we are observing them. And this is his trip, seeing and understanding in new places, with new eyes.

In his case, it is the camera he uses as a sketchbook, as an observation tool, as a traveling painter of the eighteenth century, who would wrote down all his visual experiences of the new world in notebooks - and then gave free rein to the colonizing ideas of the exotic -. Martinho Costa collects his images as sketches that become sensitive looks of the mundane, but how to span the entire world and catch it? It seems that this is the artist's main goal:  to understand - as a philosopher would - what happens in the world and how to express his hypotheses about it in painting. Each new work of the artist consists of a whole at the same time. But, when the option is the whole, how do we get to decipher that whole? Martinho Costa starts from the idea of ​​archiving, as a sensitive archive of things, of the tangible, and it is here that he faces what he means by painting and what he does not. There is a first empirical and intuitive work in selecting the images he wants to paint but this does not always follow a pattern.

A new approach to his pictorial practice can be seen in Testigo: he has stripped himself of the technology that always accompanied him to face the canvas directly. A confrontation that makes him work faster and more intensely, where he sees* his weaknesses as an exposed painter and that makes him reflect clearly in these terms: “I recently listened to a podcast about Francis Bacon’s current exhibition in the Pompidou, which talked about the idea of ​​strength in his painting, something that made me think. The painting as witness of the painter's force on the record of matter*. Painting made meat. Now that I practice this “no-grid”* way of painting the muscle is more evident. The gesture is longer, it has more doubts, sometimes it turns out, sometimes it does not. It is a real battle. You lose or you win. Before, it was all a bit more controlled, more towards the result, "without thinking" as Gerard Richter says. Now I rather pursue what I decide is important in an image (an essence).” It is for all this, perhaps, that in this exhibition we see remnants, paintings that would lead us to abstraction or ambiguity, a definitive new manner for Martinho Costa, a fascination for the visible.


Una fascinación por lo visible

por Vanessa H. Sánchez en conversación con Martinho Costa 

Gradient Tool de Martinho Costa


Maria de Fátima Lambert

“Sans promenade, je serais mort et j’aurais été contraint depuis longtemps d’abandonner mon métier, que j’aime passionnément. Sans promenade et collecte de faits, je serais incapable d’écrire le moindre compte rendu, ni davantage un article, sans parler écrire une nouvelle. »[1]
Painel-ideia 1
São inúmeros os escritores e filósofos, tanto quanto, artistas e poetas que aludiram aos benefícios da marcha, do ato de caminhar, tomando-os como substância, mas também enquanto metodologia para dinamizar seu pensamento autoral.
Caminhar nutre as reflexões que são plasmadas em obra. As caminhadas impulsionam à criação, promovem a gestação de ideias, sob diferentes perspetivas.
              
Intermédio-imagem 1
Alimentam-se com as suas imagens do mundo vivido de modo lento. Tornando, assim, o caminhante-em-modo-recetáculo, propiciado esse estado pelo ritmo antropológico/psico e sociofisiológico que se autoriza: a demora na passagem das horas – lembrando Fernando Pessoa, quanto Walter Benjamin.
Absorvem conhecimentos cinestésicos do real, mergulhado o caminhante, aquele que marcha ou divaga, no real envolvente, esse Umwelt que adensa a tomada de consciência de todas as aceções do que está disponível a ser experienciado em redor.
A velocidade é implementada, pela sua lentidão, instaurando ritmos que o caminhante controla, decide, tendo deliberado e supondo as condições necessárias ao seu desenvolvimento. Deslocando em tempo de seu bel-prazer – deixando arrastar enquanto autorretrato na paisagem.
Flexibiliza-se a capacidade de encontrar os outros, comungando de idênticos pressupostos e premissas, pois compartilhando desígnios e auspícios superiores.
Relembro Nelson-Brissac quando assinala:

“Silhuetas recortadas contra a paisagem. Imagens arquitecturais se destacando no horizonte. Pessoas e lugares que pretende encontrar depois da próxima curva. A viagem é produção de simulacros, de um mundo puramente espectral erguido à beira da estrada.”[2]

Painel-ideia 2
São fortes as imagens pintadas que evocam o confronto de um artista, poeta ou filósofo, como que emergindo, sobrelevando-se, levitando na natureza melhorada ou registada, convertida, pois em cenário ou paisagem explícitas. Relembre-se Rousseau, Thoureau, Baudelaire, Benjamin ou Herman Hesse…entre tantos outros que contribuíram para converter as caminhadas, deambulações ou flâneries em Walkscapes, na designação de Francesco Carreri.
O caminhante, assim como viajante, é eu, tanto quanto é outro e/ou outros. Caminhada, trajeto e viagem são deliberações sérias, orientam-se pela consecução de condições privilegiadoras para edificar obras, fixando bases sustentáveis, pela identidade que nunca se fecha, antes de processa em etapas agregadoras e únicas.

“O mundo é, por conseguinte, uma imensa paisagem onde o empírico e o mental se entrelaçam inevitavelmente. O ser humano não é um observador separado que configura essa paisagem, mas sim incide nela, ao pretender apreciá-la, medir e conhecer.”[3]

Intermédio-imagem 2
Estas considerações anteriores, tomo-as por impulsos, em termos iconofrásticos/ecfrásticos. Vejo-as consubstanciadas em dois retratos sublimes da iconografia europeia, que são indiscutivelmente emblemáticos: a pintura de autorretrato, intitulada “Bonjour Mr. Courbet” de Gustave Courbet (1854) e a (re)presentificação de Goethe na paisagem bucólica romana, tomada na pintura de Johann Heinrich Wilhelm Tischbein (1787).
No primeiro caso, o próprio pintor se perceciona e representa – idealizado mas realista. Integra a paisagem na conversa, decorrente do encontro que é cativado, como já de uma fotografia espontânea, um registo, se tratasse; no segundo caso, o poeta, filósofo e investigador é idealizado pelo pintor clássico, situando-o numa espécie de lugar-entre. Ou seja, estendido numa chaise-longue em plena romana campagna, na distância estendida sob a linha de fuga certeira, vêem-se os vestígios das civilizações, assim como os elementos de lapidária, próximos aos seus pés negligentes.

Painel-ideia 2
No caso de Martinho Costa, combinam-se estas duas aceções, unificadas na ideia do caminhante, acima evocada, se consideradas portanto em planos concomitantes, e que convergem na sua produção artística desde há mais de uma década. Como Mr. Courbet, o pintor português caminha adentro a paisagem entre o campo, os subúrbios e a cidade, recebendo as imagens em redor, mas deixando as suas imagens pintadas no próprio local, num ato de dádiva e partilha anónima. Quem passar, reconhecerá ou não, um excerto de paisagem que, certamente, possui alguma relacionalidade com o locus, ainda que possa não estar evidente na aparência da pequena, breve (ou não) composição.
Enquanto paráfrase da figura de Goethe, idealizando a sua presença na paisagem urbana-natural, Martinho Costa possui a lucidez da diferença e das conquistas socioculturais, assim como estéticas do real visto que evoca fora de espaço-tempo convencional, mas sem que essas coordenadas sejam totalmente alheias ao empastamento dos 3 tempos do tempo – passado e futuro no presente (que nunca é duradoiro). Diga-se que na sua pintura a efemeridade não se coloca na questão do tempo, mas nos constrangimentos do espaço-lugar, entendidas as suas imponderabilidades. Alguém pode pintar, um dia mais cedo ou mais tarde, por cima do excerto pintado por Martinho Costa, tendo por suporte uma pedra ou um pedaço de muro…e a obra desaparecerá…ou persistirá em condição de palimpsesto… Trata-se da sua série-projeto-trajeto “Pinturas ao ar livre”, na verdadeira aceção do termo. Vejam-se em http://pinturasarlivre.blogspot.pt/ . Para cumprir este propósito, o artista caminha, desloca-se para intuir o local certo que carece a sua intervenção de pintura tematizada.
Em algumas pinturas da série “Terra de Sombra Queimada”, apresentadas em 2017, encontram-se abordagens ao espaço enquanto cenário de vastidão, que gerem uma aceção panorâmica de localizações interiores ou exteriores, estabilizadas numa composição que é regularizada pela estruturação reticular distendida, sob auspícios de abordagens feitas no computador. Todavia, o procedimento dialoga com as estratégias a que, com maior frequência, no Renascimento e Barroco, os pintores recorriam para transpor o vista, mediante uma simetria e regularidade idealizada, mas provindo de uma observação de teor naturalista. Estes dispositivos, associavam-se, por exemplo, e no caso de alguns autores, a partir de uso de desenhos em gravuras que eram tratados sob formato de pintura, à semelhança do que mais tarde serviu, para alguns, a fotografia como registo para transposição pictórica.

Intermédio-imagem 3
Marcher, dans le monde contemporain, pourrait évoquer une forme de nostalgie ou de résistance. Les marcheurs sont des individus singuliers qui acceptent des heures ou des jours de sortir de leur voiture pour s’aventurer corporellement dans la nudité du monde.»[4]

Painel-ideia 4
Evocam-se estas considerações para contextualizar o processo iniciado com as pinturas murais produzidas para a Sala da Quase Galeria, assim como para os dois grandes painéis colocados nas laterais do lanço da escadaria central do Museu Nacional Soares dos Reis, quando subindo do 1º para o 2º piso. Durante vários meses, incluindo vindas específicas ao Porto, Martinho Costa, percorreu o Museu, assim como se parou na Sala da Quase Galeria, calculando internamente as características de ambos lugares e mentalmente trasladando as suas ideias-imagens-ideadas. Assim, quer num caso, quer no outro, o artista tomou como conteúdos iconográficos, painéis de Azulejos vistos previamente.
No Museu, e para conceber os dois painéis verticais laterais, analisou pormenorizadamente os painéis de azulejos que forram os muros que conduzem à escadaria, no seu pátio interior. Deles, destacou algumas figuras e situações específicas que interseccionou, combinando-as com elementos gerados em computador. A partir de uma organização cuidadosamente delineada, dividiu as figuras e formas, desfragmentando-as por assim o dizer. Tais fragmentos foram tratados de forma deliberada, jogando entre a opacidade da cor e os dinamismos figurativos das linhas e das sombras estipuladas.

Intermédio-imagem 4
Para a Sala da Quase Galeria tomou como fonte, grandes áreas de azulejaria de um palacete no Chiado, em Lisboa, procedendo de forma idêntica. Um dos denominadores comuns entre ambas obras específicas, reside na luz. Melhor, na constatação da incidência da luz, quer na Sala da Quase, quer nas Escadarias do Museu. Sob condições de luminosidade aberta, e consoante a passagem das horas viu anularem-se significativamente o que estava para ser visto dentro desses espaços e, por consequência, imaginou as figuras a desfazerem-se das suas tonalidades altas de cor e contornos, volumes e significados visuais, para se ocultarem por essa ação do tempo. Donde as velaturas sobrepostas e graduadas como no software Gradient Tool. A partir daí, há que pensar que a caminhada, a deslocação no lugar, não é mais a do artistas, mas a do visitante que haverá de agarrar as nuances, as ínfimas diferenciações estabelecidas, e sabendo posicionar-se, definindo o seu lugar de espectador, sabendo usufruir da sua condição de observador.

Painel-ideia 5
As árvores inclinadas ou entrelaçando-se dividem as cenas nos grandes painéis de azulejos, organizando-lhes a sequência, pontuando a narrativa intrínseca e isolando as unidades evidenciadoras das narrativas ou relatos. As figuras recortadas em perfil ou a ¾ insinuam-se, evocativas de uma tradição que radica nos painéis azulejares dos sécs. XVII e XVIII em Portugal. Tais pinturas em azulejo decorriam, com alguma frequência, de uma composição que trazia elementos copiados de gravuras convenientes, associadas a detalhes estilísticos, consoante o gosto estético dominante, e próprio da oficina que os produzia. Existe pois, uma espécie de vocabulário, de glossário visual que permite reencontrar figuras-tipo e inventariar situações e episódios, proporcionando uma cumplicidade entre um saber mais lato – em termos de público, não apenas erudito, e outros que exacerbam mais o culto das artes e dos saberes. Mas a sedução azulada destas unidades cerâmicas encontrou eco nos papéis pintados com a subversão da escala – azulejos desmesurados – e nos quadrados menores de Mdf pintado, colocados na diagonal, dos dois “vitrais de azulejo” nos patamares do Museu Nacional Soares dos Reis.


Intermédio-imagem 5
Sem que eu possa calar-me, olhar os painéis pintados de Martinho Costa, obrigam-me a regressar à Serra d’Ossa, a memórias desses mergulhos nos tempos que, anualmente, eu repito.
Percorrer os corredores escurecidos do Convento de São Paulo, deslizar o olhar, ao longo das paredes [espessas] forradas, sendo os azulejos uma espécie de pele que, de tão esticada, se indissocia do “dentro”, sedimento das entranhas de eremitas e senhores.
As portas interrompem os panos/ as cenas, “semantizando” vivências iconografadas e assim, nos vão incorporando, ao relatarem episódios representados – quer do Velho e do Novo Testamento; assim como cenas galantes, que os ingleses designariam por conversation piece e os holandeses tanto gostavam de celebrar nas suas cenas de intimidade da família nos ritmos costumeiros.

Painel-ideia 6
40 unidades escrevem-se em 5 linhas paralelas, compostas na horizontal e cruzadas na vertical por 8 conjunto de elementos consecutivos. O tempo desliza na pele do papel engrossado pelas camadas de tinta e as sucessivas velaturas aguadas que, num direcionamento em quase diagonal esbranquiçam o azulado, sem todavia o desmanchar. Apenas o apaziguam, consignados pela luz que jorra pela porta envidraçada adentro. Não vem junto nada de paisagem. A paisagem deteve-se, não querendo imiscuir-se com a alegoria de dentro.
               Intermédio-imagem 6
Porta envidraçada verdadeira, porta interior d madeira e de verdade [“…onde se vê absolutamente nada”, parafraseando Manoel de Barros, poeta de Góias, Brasil], paredes verdadeiras: eis o que se desenrola na arquitetura da Sala da Quase Galeria.

Painel-ideia 7    
Os perfis garbosos insinuam-se, sobrepondo-se aos fundo invisibilizados da paisagem que funciona como base de sustentação. As figuras param-se na postura justa, comprovando a prevalência da concinnitas. Os adereços afeiçoam a veracidade pintada, pormenorizados por traços regimentados por pulsões controladas. O todo compõe-se da visão, da acuidade das imagens-ideias que conseguem autonomizar-se do seu autor. O detalhe, sabemos com Daniel Arasse quanto é insubstituível na nossa consciência de ver, de detetar, poderá cumprir a função do punctum dito por Roland Barthes – penso eu.
               Intermédio-imagem 7
A figura de convite congelou-se no átrio anterior à Sala da Galeria, esboçando um tímido acolhimento a todos que aí se dirijam. Não é uma figura impositiva (apesar de seu traje esmerado, erudito mesmo), aliás encontra-se algo embaraçada de tanto azul e branco a destaca-la da parede e sob luz de um foco artificial à noite. Sente-se iluminada de dentro para fora. Ao longo do dia, vai readquirindo aquela postura – re-ganha confiança em si mesma – torna-se invejável, à semelhança daqueles seus antepassados ocuparam em palacetes e casas solarengas para deleite dos ilustres e de todos.

Painel-ideia 8
Nalguns casos clássicos da história da pintura, as figuras desvaneciam-se, perdiam-se, porque escondidas ou dissimuladas na paisagem – quer interior, quer exterior. Na azulejaria, os painéis expunham figuras entre o galante e o mitológico, apropriando-se da subversão dos tempos históricos, embora a eles aludindo em ritmos estudados. Nos 2 painéis de azulejos simulados, pintados em formatos desconvencionados, a descoberta impõe-se procurando o reconhecimento das ideias – e não tanto das figurações – a que Martinho Costa quis aludir, nomeadamente na proximidade dos grandes vasos que ladeiam a grande vidraça por onde a luz há-de entrar sempre.
               Intermédio-imagem 8
“É de ressaltar que as imagens privilegiam a paisagem urbana e a natural, sendo raros os casos onde o homem se faz presente; quando isto ocorre os indivíduos registrados encontram-se distantes da câmara, diluídos ao fundo da representação.”[5]
CODA
Haverá que deambular, depois, pela cidade do Porto, de modo a encontrar as pinturas escondidas que Martinho Costa nos possa legar, como testemunho simbólico desta sua incursão-viagem-caminhada. Também…porque cumpre o que Xavier de Meistre aconselhou:
“Feliz também o pintor cujo amor pela paisagem o leva a passeios solitários, que sabe exprimir na tela o sentimento de tristeza que lhe inspira um bosque sombrio ou um campo deserto! As suas produções imitam e reproduzem a natureza; ele cria novos mares e negras cavernas ignotas ao sol: a seu mando, verdes arvoredos saltam do nada, o azul do céu reflecte-se nos seus quadros; conhece a arte de turvar os ares e de fazer rugir as tempestades.”[6]




[1] Robert Walser, « Promenade », citado por David le Breton, Marcher, éloge des chemins et de la lenteur, Paris, Métailié, 2012, p.28
[2] Nelson Brissac Peixoto – “Miragens”, Cenários em ruínas – a realidade imaginária contemporânea, Lisboa, Gradiva, 2010, p.137
[3] Gloria Moure, On the Road, Santiago de Compostela, Xunta de Galicia, 2014.
[4] David le Breton – Éloge de la marche, Paris, Métailié, 2000, p.14
[5] Boris Kossoi, Realidades e ficções na trama fotográfica, SP, Ateliê Editorial, 2002, p.101
[6] Xavier de Meistre, Viagem à roda do meu quarto, Lisboa, & etc, 2002, p.32-33 (Cap. VII)