Maria de Fátima Lambert
“Sans promenade, je serais mort et
j’aurais été contraint depuis longtemps d’abandonner mon métier, que j’aime
passionnément. Sans promenade et collecte de faits, je serais incapable
d’écrire le moindre compte rendu, ni davantage un article, sans parler écrire
une nouvelle. »
Painel-ideia
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São inúmeros
os escritores e filósofos, tanto quanto, artistas e poetas que aludiram aos
benefícios da marcha, do ato de caminhar, tomando-os como substância, mas
também enquanto metodologia para dinamizar seu pensamento autoral.
Caminhar
nutre as reflexões que são plasmadas em obra. As caminhadas impulsionam à
criação, promovem a gestação de ideias, sob diferentes perspetivas.
Intermédio-imagem 1
Alimentam-se com as
suas imagens do mundo vivido de modo lento. Tornando, assim, o
caminhante-em-modo-recetáculo, propiciado esse estado pelo ritmo
antropológico/psico e sociofisiológico que se autoriza: a demora na passagem
das horas – lembrando Fernando Pessoa, quanto Walter Benjamin.
Absorvem
conhecimentos cinestésicos do real, mergulhado o caminhante, aquele que marcha
ou divaga, no real envolvente, esse Umwelt
que adensa a tomada de consciência de todas as aceções do que está disponível a
ser experienciado em redor.
A velocidade é implementada, pela sua
lentidão, instaurando ritmos que o caminhante controla, decide, tendo
deliberado e supondo as condições necessárias ao seu desenvolvimento.
Deslocando em tempo de seu bel-prazer – deixando arrastar enquanto autorretrato
na paisagem.
Flexibiliza-se a capacidade de
encontrar os outros, comungando de idênticos pressupostos e premissas, pois
compartilhando desígnios e auspícios superiores.
Relembro Nelson-Brissac
quando assinala:
“Silhuetas recortadas contra a paisagem. Imagens arquitecturais
se destacando no horizonte. Pessoas e lugares que pretende encontrar depois da
próxima curva. A viagem é produção de simulacros, de um mundo puramente
espectral erguido à beira da estrada.”
Painel-ideia
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São fortes
as imagens pintadas que evocam o confronto de um artista, poeta ou filósofo,
como que emergindo, sobrelevando-se, levitando na natureza melhorada ou
registada, convertida, pois em cenário ou paisagem explícitas. Relembre-se
Rousseau, Thoureau, Baudelaire, Benjamin ou Herman Hesse…entre tantos outros
que contribuíram para converter as caminhadas, deambulações ou flâneries em Walkscapes, na designação de Francesco
Carreri.
O caminhante, assim como viajante, é eu, tanto quanto é outro e/ou outros. Caminhada,
trajeto e viagem são deliberações sérias, orientam-se pela consecução de
condições privilegiadoras para edificar obras, fixando bases sustentáveis, pela
identidade que nunca se fecha, antes de processa em etapas agregadoras e
únicas.
“O mundo é, por conseguinte, uma
imensa paisagem onde o empírico e o mental se entrelaçam inevitavelmente. O ser
humano não é um observador separado que configura essa paisagem, mas sim incide
nela, ao pretender apreciá-la, medir e conhecer.”
Intermédio-imagem 2
Estas considerações anteriores, tomo-as
por impulsos, em termos iconofrásticos/ecfrásticos. Vejo-as consubstanciadas em
dois retratos sublimes da iconografia europeia, que são indiscutivelmente emblemáticos:
a pintura de autorretrato, intitulada “Bonjour Mr. Courbet” de Gustave Courbet
(1854) e a (re)presentificação de Goethe na paisagem bucólica romana, tomada na
pintura de Johann
Heinrich Wilhelm Tischbein (1787).
No primeiro caso, o próprio pintor se perceciona e
representa – idealizado mas realista. Integra a paisagem na conversa,
decorrente do encontro que é cativado, como já de uma fotografia espontânea, um
registo, se tratasse; no segundo caso, o poeta, filósofo e investigador é
idealizado pelo pintor clássico, situando-o numa espécie de lugar-entre. Ou
seja, estendido numa chaise-longue em plena romana
campagna, na distância estendida sob a linha de fuga certeira, vêem-se os
vestígios das civilizações, assim como os elementos de lapidária, próximos aos
seus pés negligentes.
Painel-ideia
2
No caso de
Martinho Costa, combinam-se estas duas aceções, unificadas na ideia do
caminhante, acima evocada, se consideradas portanto em planos concomitantes, e
que convergem na sua produção artística desde há mais de uma década. Como Mr.
Courbet, o pintor português caminha adentro a paisagem entre o campo, os
subúrbios e a cidade, recebendo as imagens em redor, mas deixando as suas
imagens pintadas no próprio local, num ato de dádiva e partilha anónima. Quem
passar, reconhecerá ou não, um excerto de paisagem que, certamente, possui
alguma relacionalidade com o locus,
ainda que possa não estar evidente na aparência da pequena, breve (ou não)
composição.
Enquanto
paráfrase da figura de Goethe, idealizando a sua presença na paisagem
urbana-natural, Martinho Costa possui a lucidez da diferença e das conquistas
socioculturais, assim como estéticas do real visto que evoca fora de
espaço-tempo convencional, mas sem que essas coordenadas sejam totalmente
alheias ao empastamento dos 3 tempos do tempo – passado e futuro no presente
(que nunca é duradoiro). Diga-se que na sua pintura a efemeridade não se coloca
na questão do tempo, mas nos constrangimentos do espaço-lugar, entendidas as
suas imponderabilidades. Alguém pode pintar, um dia mais cedo ou mais tarde,
por cima do excerto pintado por Martinho Costa, tendo por suporte uma pedra ou
um pedaço de muro…e a obra desaparecerá…ou persistirá em condição de
palimpsesto… Trata-se da sua série-projeto-trajeto “Pinturas ao ar livre”, na
verdadeira aceção do termo. Vejam-se em
http://pinturasarlivre.blogspot.pt/
. Para cumprir este propósito, o artista caminha, desloca-se para intuir o
local certo que carece a sua intervenção de pintura tematizada.
Em algumas
pinturas da série “Terra de Sombra Queimada”, apresentadas em 2017,
encontram-se abordagens ao espaço enquanto cenário de vastidão, que gerem uma
aceção panorâmica de localizações interiores ou exteriores, estabilizadas numa
composição que é regularizada pela estruturação reticular distendida, sob
auspícios de abordagens feitas no computador. Todavia, o procedimento dialoga
com as estratégias a que, com maior frequência, no Renascimento e Barroco, os
pintores recorriam para transpor o vista, mediante uma simetria e regularidade
idealizada, mas provindo de uma observação de teor naturalista. Estes
dispositivos, associavam-se, por exemplo, e no caso de alguns autores, a partir
de uso de desenhos em gravuras que eram tratados sob formato de pintura, à
semelhança do que mais tarde serviu, para alguns, a fotografia como registo
para transposição pictórica.
Intermédio-imagem 3
“Marcher, dans le monde contemporain, pourrait évoquer une forme de
nostalgie ou de résistance. Les marcheurs sont des individus singuliers
qui acceptent des heures ou des jours de sortir de leur voiture pour
s’aventurer corporellement dans la nudité du monde.»
Painel-ideia
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Evocam-se
estas considerações para contextualizar o processo iniciado com as pinturas
murais produzidas para a Sala da Quase Galeria, assim como para os dois grandes
painéis colocados nas laterais do lanço da escadaria central do Museu Nacional
Soares dos Reis, quando subindo do 1º para o 2º piso. Durante vários meses,
incluindo vindas específicas ao Porto, Martinho Costa, percorreu o Museu, assim
como se parou na Sala da Quase Galeria, calculando internamente as
características de ambos lugares e mentalmente trasladando as suas ideias-imagens-ideadas.
Assim, quer num caso, quer no outro, o artista tomou como conteúdos iconográficos,
painéis de Azulejos vistos previamente.
No Museu, e
para conceber os dois painéis verticais laterais, analisou pormenorizadamente
os painéis de azulejos que forram os muros que conduzem à escadaria, no seu
pátio interior. Deles, destacou algumas figuras e situações específicas que
interseccionou, combinando-as com elementos gerados em computador. A partir de
uma organização cuidadosamente delineada, dividiu as figuras e formas,
desfragmentando-as por assim o dizer. Tais fragmentos foram tratados de forma
deliberada, jogando entre a opacidade da cor e os dinamismos figurativos das
linhas e das sombras estipuladas.
Intermédio-imagem 4
Para a Sala da Quase Galeria tomou
como fonte, grandes áreas de azulejaria de um palacete no Chiado, em Lisboa,
procedendo de forma idêntica. Um dos denominadores comuns entre ambas obras
específicas, reside na luz. Melhor, na constatação da incidência da luz, quer
na Sala da Quase, quer nas Escadarias do Museu. Sob condições de luminosidade
aberta, e consoante a passagem das horas viu anularem-se significativamente o
que estava para ser visto dentro desses espaços e, por consequência, imaginou
as figuras a desfazerem-se das suas tonalidades altas de cor e contornos,
volumes e significados visuais, para se ocultarem por essa ação do tempo. Donde
as velaturas sobrepostas e graduadas como no software Gradient Tool. A partir daí, há que pensar que a caminhada, a
deslocação no lugar, não é mais a do artistas, mas a do visitante que haverá de
agarrar as nuances, as ínfimas diferenciações estabelecidas, e sabendo posicionar-se,
definindo o seu lugar de espectador, sabendo usufruir da sua condição de
observador.
Painel-ideia 5
As árvores
inclinadas ou entrelaçando-se dividem as cenas nos grandes painéis de azulejos,
organizando-lhes a sequência, pontuando a narrativa intrínseca e isolando as
unidades evidenciadoras das narrativas ou relatos. As figuras recortadas em
perfil ou a ¾ insinuam-se, evocativas de uma tradição que radica nos painéis
azulejares dos sécs. XVII e XVIII em Portugal. Tais pinturas em azulejo
decorriam, com alguma frequência, de uma composição que trazia elementos
copiados de gravuras convenientes, associadas a detalhes estilísticos,
consoante o gosto estético dominante, e próprio da oficina que os produzia.
Existe pois, uma espécie de vocabulário, de glossário visual que permite
reencontrar figuras-tipo e inventariar situações e episódios, proporcionando
uma cumplicidade entre um saber mais lato – em termos de público, não apenas
erudito, e outros que exacerbam mais o culto das artes e dos saberes. Mas a
sedução azulada destas unidades cerâmicas encontrou eco nos papéis pintados com
a subversão da escala – azulejos desmesurados – e nos quadrados menores de Mdf pintado, colocados na diagonal, dos
dois “vitrais de azulejo” nos patamares do Museu Nacional Soares dos Reis.
Intermédio-imagem 5
Sem que eu possa calar-me, olhar os
painéis pintados de Martinho Costa, obrigam-me a regressar à Serra d’Ossa, a
memórias desses mergulhos nos tempos que, anualmente, eu repito.
Percorrer os corredores escurecidos do
Convento de São Paulo, deslizar o olhar, ao longo das paredes [espessas]
forradas, sendo os azulejos uma espécie de pele que, de tão esticada, se
indissocia do “dentro”, sedimento das entranhas de eremitas e senhores.
As portas interrompem os panos/ as
cenas, “semantizando” vivências iconografadas e assim, nos vão incorporando, ao
relatarem episódios representados – quer do Velho e do Novo Testamento; assim
como cenas galantes, que os ingleses designariam por conversation piece e os holandeses tanto gostavam de celebrar nas
suas cenas de intimidade da família nos ritmos costumeiros.
Painel-ideia 6
40 unidades escrevem-se em 5 linhas paralelas, compostas na
horizontal e cruzadas na vertical por 8 conjunto de elementos consecutivos. O
tempo desliza na pele do papel engrossado pelas camadas de tinta e as
sucessivas velaturas aguadas que, num direcionamento em quase diagonal
esbranquiçam o azulado, sem todavia o desmanchar. Apenas o apaziguam, consignados
pela luz que jorra pela porta envidraçada adentro. Não vem junto nada de
paisagem. A paisagem deteve-se, não querendo imiscuir-se com a alegoria de
dentro.
Intermédio-imagem 6
Porta envidraçada verdadeira, porta interior
d madeira e de verdade [“…onde se vê absolutamente nada”, parafraseando Manoel
de Barros, poeta de Góias, Brasil], paredes verdadeiras: eis o que se desenrola
na arquitetura da Sala da Quase Galeria.
Painel-ideia 7
Os perfis garbosos insinuam-se, sobrepondo-se aos fundo
invisibilizados da paisagem que funciona como base de sustentação. As figuras
param-se na postura justa, comprovando a prevalência da concinnitas. Os adereços afeiçoam a veracidade pintada,
pormenorizados por traços regimentados por pulsões controladas. O todo compõe-se
da visão, da acuidade das imagens-ideias que conseguem autonomizar-se do seu
autor. O detalhe, sabemos com Daniel Arasse quanto é insubstituível na nossa
consciência de ver, de detetar, poderá cumprir a função do punctum dito por Roland Barthes – penso eu.
Intermédio-imagem 7
A figura de convite congelou-se no
átrio anterior à Sala da Galeria, esboçando um tímido acolhimento a todos que
aí se dirijam. Não é uma figura impositiva (apesar de seu traje esmerado,
erudito mesmo), aliás encontra-se algo embaraçada de tanto azul e branco a
destaca-la da parede e sob luz de um foco artificial à noite. Sente-se
iluminada de dentro para fora. Ao longo do dia, vai readquirindo aquela postura
– re-ganha confiança em si mesma – torna-se invejável, à semelhança daqueles
seus antepassados ocuparam em palacetes e casas solarengas para deleite dos
ilustres e de todos.
Painel-ideia 8
Nalguns casos clássicos da história da pintura, as figuras
desvaneciam-se, perdiam-se, porque escondidas ou dissimuladas na paisagem –
quer interior, quer exterior. Na azulejaria, os painéis expunham figuras entre
o galante e o mitológico, apropriando-se da subversão dos tempos históricos,
embora a eles aludindo em ritmos estudados. Nos 2 painéis de azulejos
simulados, pintados em formatos desconvencionados, a descoberta impõe-se
procurando o reconhecimento das ideias – e não tanto das figurações – a que
Martinho Costa quis aludir, nomeadamente na proximidade dos grandes vasos que
ladeiam a grande vidraça por onde a luz há-de entrar sempre.
Intermédio-imagem 8
“É de ressaltar que as imagens
privilegiam a paisagem urbana e a natural, sendo raros os casos onde o homem se
faz presente; quando isto ocorre os indivíduos registrados encontram-se
distantes da câmara, diluídos ao fundo da representação.”
CODA
Haverá que deambular, depois, pela cidade do Porto, de modo
a encontrar as pinturas escondidas que Martinho Costa nos possa legar, como
testemunho simbólico desta sua incursão-viagem-caminhada. Também…porque cumpre
o que Xavier de Meistre aconselhou:
“Feliz também o pintor cujo amor pela paisagem o leva a
passeios solitários, que sabe exprimir na tela o sentimento de tristeza que lhe
inspira um bosque sombrio ou um campo deserto! As suas produções imitam e
reproduzem a natureza; ele cria novos mares e negras cavernas ignotas ao sol: a
seu mando, verdes arvoredos saltam do nada, o azul do céu reflecte-se nos seus
quadros; conhece a arte de turvar os ares e de fazer rugir as tempestades.”
Xavier de Meistre, Viagem à roda do meu quarto, Lisboa, & etc, 2002,
p.32-33 (Cap. VII)