Pinturas sem horizonte - João Pinharanda

As pinturas de Martinho Costa fazem-se tão perto dos motivos que são, quase sempre, pinturas sem horizonte. 

Tomadas de perto, sobre pormenores de uma realidade maior que raramente se revela, são também pinturas que iludem as suas dimensões (pequenas, médias ou grandes) para aspirarem a uma escala que as faria coincidir com o motivo - como o mapa que Borges fez coincidir com a realidade do território que registava. Mas, no processo de Martinho Costa não se trata de desenvolver um projecto totalitário de apreensão (mais no sentido da captura que do conhecimento) da realidade; trata-se antes de um projecto que, no seu desejo de ”pintar tudo”, se apresenta como modalidade de resgate da realidade.


Tempo houve em que o artista, nas suas Pinturas ao Ar Livre, ironizava sobre a tradição naturalista e “ar librista” pintando directamente sobre paredes, muros ou outros materiais de construção (como pedras de calçada) que integravam os próprios motivos das pinturas. Martinho Costa afastou-se depois da materialidade exacerbada que essa prática conferia às imagens, muitas delas pintadas em lugares de difícil acesso e deixadas ao abandono e degradação natural, nos suportes imóveis onde tinham sido criadas. Isso não afastou Martinho Costa da tarefa principal que a sua pintura propõe: a valorização do que, em nosso redor, tende para a invisibilidade, para o anonimato, para a perda. Pelo contrário, dando-lhe mais mobilidade permitiu-lhe desenvolver mais vastos mapeamentos do mundo exterior numa profusão de imagens que depois apresenta em diversas soluções de dimensão, montagem e formato. 

Em séries mais recentes, quando pinta sobre uma superfície dobrada em ângulo recto, cria uma esquina (uma dobragem) que descoincide com a realidade que representa, mas que confere realidade tridimensional ao ilusionismo das imagens planas. Também quando compõe a esquina interior de uma sala de exposições, criando uma grelha de dezenas de pequenas imagens, como se fossem tumbnails, Martinho Costa mima a estratégia de apresentação de um portfolio de artista (do seu portfolio) numa página de motor de busca aberta num écran de computador. Martinho Costa estabelece assim um atlas de imagens banais ou que poderemos mesmo classificar de sub-normais devido à irrelevância poética, literária, visual que as podem justificar. Ao executar verdadeiros raids, apresentando-se com uma visão de 360º, limpando o campo minado do que é belo e relevante no mundo, o artista concentra-se apenas no resto (ou nos restos) da realidade. 

 

Na verdade, estas pinturas são fotografias realistas pensadas desde início como pinturas - o registo inicial perde-se ou é rejeitado no processo de criação pictural. Pensadas como pinturas / para serem pinturas elas seriam insignificantes enquanto fotografias. E é, em simultâneo, a partir e contra essas fotografias (ou a sua prática), a partir de um referente (a fotografia mecânica ou digital) que se desacredita que Martinho Costa recupera quer a dignidade da pintura quer a dignidade dos motivos indignos que escolhe. 


Algumas pinturas expõem de modo especialmente claro o que dizemos: Árvore, Portão, Portão Verde, Pano, por exemplo, representam a sua tendência para o close-up que revela o pormenor sem dar a compreender o todo. Os títulos, de sabor também naturalista, parecem acentuar o que as imagens mostram. De facto, são títulos falsamente descritivos, incompletos ou desviados; nunca dizem o mais importante, nunca focam o que é a centralidade da imagem: a Árvore é, afinal, um ser frágil, juvenil e descentrado; o Portão, que ocupa a totalidade da superfície como um mero papel de parede, e dá nome à pintura, é visualmente menos importante que o estreito ferro dobrado que corta a imagem com uma linha oblíqua e a sua sombra, que é onde o nosso olhar imediatamente se concentra; o Portão Verde, mantém as mesmas características de fuga, surgindo ainda como fragmento dentro do fragmento - elemento também deslocado do cento de uma parede inacabada, sai do nosso campo de visão deslizando pelo lado direito imagem; as mesmas constatações valem para o modo como Pano nos é apresentado.


Há ainda pinturas que, mantendo características das anteriores, podem funcionar como testemunho maior ou manifesto de todo o processo e projecto de trabalho de Martinho Costa: Sol Negro, Falsas Montanhas, , por exemplo. Desejo que, ao encadeá-las assim, a sua posição, não signifique qualquer hierarquização - todas três me parecem de igual importância: a tampa da objectiva que (vista? encontrada? atirada? inadvertidamente caída?), no chão, cifra (mas ao mesmo tempo desvenda) a tarefa de registo fotográfico a que se dedica o pintor; a falsa paisagem de montanhas (evidentemente “sem horizonte”) composta por um monte de papéis amarrotados, amontoados no chão e onde os jogos de ilusão e escala são decisivos; finalmente, o lixo que uma pá doméstica de cabo recolhe como se recolhesse algo de precioso, merecedor de ser representado. Note-se que todas estas coisas (e também o Pano, já referido) são “coisas do chão”: vistas, encontradas, apanhadas (?), representadas em terra solta, semeada de ervas daninhas, em cimentos sujos e mal tratados, perto de muros mal conservados, portões ferrugentos... É a pintura que eleva o estatuto destes motivos.


No conjunto de imagens que nos interessou destacar apenas a pintura Baliza se apresenta integra e central ao nosso olhar. Talvez possamos pensar que ela é metáfora da rede que, receptáculo e armadilha, passiva e activa, acolhe / captura o nosso olhar para o seu interior, para a interminável teoria de imagens que Martinho Costa vai desdobrando à nossa frente em scroll down. De qualquer modo, há outra uma dupla leitura: através das sombras da baliza que avançam em nossa direcção toda a estrutura se reverte e se expande-se até ao campo físico que ocupamos (ou seja, para fora da pintura). Não sabemos se o faz como ameaça se como convite.


João Pinharanda

Paris, 8 de Março de 2020