Texto - Artecapital - Maria Beatriz Marquilhas


Martinho Costa (Fátima, 1977) tem vindo a desenvolver o seu trabalho artístico numa constante pesquisa pictórica e conceptual através da recolha de imagens que proliferam na internet. O seu mais recente projecto, sob o título O Diário de Robert Stern, pode ser actualmente visitado na Galeria 111. O nome dado à exposição não pretende aqui aludir metaforicamente a um sentido abstracto, uma vez que se trata realmente do registo diário de um homem real, Robert Stern, que vive em Quakertown, Pensilvânia, E.U.A., onde fotografa o seu quotidiano, publicando posteriormente as imagens captadas no seu flickr. 


Uma série de pinturas confere uma representação pictórica a momentos do quotidiano do protagonista e daqueles que o rodeiam. Através de uma multiplicidade de detalhes referenciais localizamos temporalmente os episódios representados no Presente: telemóveis, máquinas fotográficas, as roupas e toda a ambiência que rodeia as personagens da vida de Robert Stern. A exposição corresponde assim a uma viagem aos meandros da memória e do registo documental da vida de um homem comum. As personagens repetem-se, estabelecemos uma relação com elas, extraímos o seu carácter e comportamento perante o olhar de Robert Stern. Os episódios são captados sem artifícios, e os momentos são apreendidos com naturalidade: uma festa de halloween, um passeio pelo parque, um serão em casa com amigos, um passeio num dia de neve, a namorada Amber, exaustivamente fotografada, os cães de Robert, uma aula de dança, uma ida à praia, uma festa de Carnaval, uma caminhada pelos bosques. 



I. A obra de Arte enquanto registo 


A História da Arte constitui uma história da representação humana, e como tal, um registo da existência humana desde os seus primórdios. No entanto, é com o advento do fotográfico que surge de um modo clarividente uma abordagem artística correspondente a uma intenção de registo documental, de acumulação e constituição de uma memória colectiva ou individual pela via imagética. Partindo precisamente de imagens fotográficas, Martinho Costa, com O Diário de Robert Stern, questiona a exclusividade do fotográfico enquanto dispositivo de registo, utilizando a pintura de um modo documental. No entanto, o artista não o faz (re)pisando o caminho do realismo fotográfico na pintura. Pelo contrário, o realismo das suas pinturas encontra-se não no estilo pictórico mas na intenção conceptual que delas emerge. 


A exposição de Martinho Costa representa indubitavelmente uma unidade documental em pintura, desenho e um vídeo em animação. O artista parece ser aqui um voyer que, navegando entre imagens virtuais, expõe a privacidade de uma identidade aparentemente revestida sob o anonimato, mas que expõe pequenos detalhes imagéticos da sua vida íntima no espaço público, através da internet, o que nos leva a uma reflexão em torno das redes sociais que habitam a contemporaneidade, e do modo como estas promovem uma constante reavaliação dos conceitos de privado e público, bem como dos limites entre ambos e do modo como se contaminam. 



II. Expressionismo fotográfico 


As pinturas, ainda que procurem constituir uma representação realista da existência, são marcadas por pinceladas soltas que nos remetem para um estilo que se aproxima de um expressionismo pictórico. Este aspecto é talvez o que de mais contraditório encontramos neste trabalho de Martinho Costa: observamos as imagens, extraindo a intenção do autor de que elas sejam vistas enquanto fotografias, conseguimos ver a sombra de um suposto “fotógrafo”, algumas delas são marcadas pelo flash, e em todas elas está presente a marca da representação fotográfica, a captação de um momento irrepetível, com todas as pequenas falhas que a espontaneidade pode conter em si. A realidade captada a pincel, contrariando o realismo pictórico enquanto registo documental da existência. Martinho Costa inverte as tendências, partindo do realismo fotográfico para a pintura de cariz expressionista, mantendo, no entanto, o carácter documental das imagens. 


Algumas das obras parecem desfocadas ou marcadas por manchas de luz, como na pintura Flash, o que por momentos nos leva a questionar a origem fotográfica das imagens, pois que as torna mais abstractas. No entanto, estas marcas vêm apenas reforçar o núcleo conceptual da exposição, uma vez que constituem “falhas” de âmbito fotográfico. Também em Estrelas, uma obra de grandes dimensões onde de um fundo negro podemos apenas destacar pequenos pontos ou manchas claras, parecemos por momentos estar perante uma obra abstracta, sem qualquer intenção além de representar exactamente o que vemos, pequenos traços que povoam um rectângulo negro. No entanto, tal como acontece em todas as outras obras, também esta parte de um registo fotográfico, representando um céu estrelado que Robert Stern terá visto e fotografado numa noite incerta da sua existência. 


Martinho Costa, através de O Diário de Robert Stern, parte de imagens triviais para a criação de obras de arte, promovendo um questionamento, ao atribuir à pintura uma funcionalidade que, na generalidade, é atribuída ao dispositivo fotográfico - a de registo documental, sem que, no entanto, a pintura abdique dos seus ditames estéticos e técnicos. O traço a pincel concede às imagens de Robert Stern, agora de Martinho Costa, uma plasticidade de que o fotográfico documental está desprovido. 

Maria Beatriz Marquilhas