Ruínas dum tempo sem memória - Emília Ferreira



1. A ruína como tema artístico

Poderosa metáfora para o tempo, a ruína tem, como elemento pictórico, história própria. Tardia no Ocidente, surge, no final da Idade Média, como fundo de paisagem e afirma-se apenas quando o Renascimento anuncia os seus pressupostos. Petrarca é geralmente apontado como o primeiro italiano — e o primeiro Ocidental — a mencionar o gosto pela ruína. O Renascimento adopta-a então, ora como elemento cenográfico, simbólico do conhecimento dos antigos (em alguns retratos de ilustres humanistas, por exemplo), ora em obras de cariz religioso, como as representações da natividade, figurando como alegoria da ordem nascente sobre os escombros do paganismo. A ruína emerge assim como a enunciação inequívoca de um novo tempo. Da efemeridade da vida e da sedimentação do peso dos dias sobre a paisagem.
O Barroco notabilizá-la-á como sinónimo de belo. Ao descobrir a beleza da velhice, cria uma nova “categoria do belo, o bizarro” [1], na qual o velho toma o mais apelativo rosto de antigo. E, assim, do mesmo modo que, então, a escultura passa a mostrar, amorosamente, os aspectos até aí vistos como tenebrosos, do esqueleto (ruína do corpo, etapa final da nossa história pessoal, derradeiro aspecto de diferenciação — e de indiferenciação, também, já que a morte é a grande igualizadora — antes de nos tornarmos pó), também a pintura acolhe as representações da paisagem pontuada de ruínas.
Em alguns casos, como é notório em gravuras de René-Jacques Charpentier ou de Giovanni Baptista Piranesi, nas cenas de ruínas associam-se várias imagens de morte: a dos edifícios, das civilizações e dos homens. Esqueletos humanos ou urnas de homens célebres convivem com destroços de palácios, templos ou monumentos. A morte reina sobre o que antes foi vivo e poderoso — e que, mesmo na destruição, mantém o seu irresistível apelo, o seu encantatório chamamento.
Do gosto da representação da paisagem natural, ao das vedute, para sempre associadas a Veneza, a Canaletto e Francesco Guardi e ao exercício educativo do Grand Tour (a viagem empreendida no século XVIII, pelos jovens de classes abastadas, para complemento da sua educação, que assim se enriquecia com o contacto com o mundo e os vestígios de outros tempos e culturas), retomou-se o gosto da vista melhorada — que os flamengos já haviam inventado na representação da paisagem natural.
Assim, se a veduta, tal como a definia Canaletto, era tomada "dal vero" — ou seja, mesmo alterada, melhorada, como tantas vezes se encontra em Guardi, a paisagem retratada era supostamente reflexo da realidade — já a da ruína, enquanto elemento central na pintura [2], era guardada para um exercício de estilo: os caprichos.
Estas "vedute ideate", literalmente vistas idealizadas, como lhes chamava Canaletto, eram paisagens compostas com elementos inventados. Com a novidade, em relação aos flamengos, de que os “organismos estranhos” nelas introduzidos não eram montanhas, nem quaisquer outros acidentes de terreno, mas edifícios que tinham como particularidade interessante o facto de se encontrarem semi-destruídos.
Essas arquitecturas parciais — exercícios do fragmento que, tomado como objecto de culto, é tornado epicentro do fenómeno da representação, encenando e evocando um tempo simultaneamente perfeito e perdido — mimam o real e projectam uma poética que o actualiza, ordenando-o de acordo com a imaginação do autor, que assim cria as suas próprias arquitecturas perfeitas e se integra na tradição, reformulando-a. O desenho e a pintura, criadores desses não-lugares que constituem os caprichos,  espaços desabitados e abandonados, onde o pretérito se enraíza, encenam o salto cronológico; apoderam-se do tempo: um tempo que alimenta a nossa emoção.
O século XVIII, juntando à beleza a consciência temporal, mostrar-nos-á a ruína como o belo ameaçado pela morte. Hubert Robert, porventura o pintor francês mais associado à escolha da ruína como tema preferencial (graças também à crítica de Diderot, por ocasião do Salon de 1767, na qual o pintor apresentou mais de duas dezenas de obras em que figuravam arquitecturas imaginárias), tratou-a com especial atenção, coroando-a com frequência com uma luz dourada, oriunda de céus altos e majestosos.
A finitude torna-se tema central: tudo tem um fim, tudo está ameaçado; até o que foi construído para durar, até o que, pelas suas qualidades intrínsecas, mereceria ser perene. Mereceria permanecer, para nossa eterna contemplação. A ruína surge, portanto, nestes anos (e, em muitos modos, assim se mantém), como alegoria do tempo. Consciência do que a sua passagem opera sobre o mundo, a reflexão sobre o final, sobre a vanidade de tudo face ao grande apagamento, abrirá caminho ao romantismo. Desse tempo longo tirará ainda o século XIX a noção de história, de pertença, de cultura. De património. Até de nacionalidade. As ruínas configurar-se-ão assim como elementos fundadores da nossa identidade e da nossa cultura, traços que legitimam a nossa permanência num território e que inspirarão a nossa produção futura [3]. Como referirá George Steiner, a ruína é a memória; e é, por isso mesmo, elemento constituinte do que somos.
Por tudo isto, a ruína, como conceito, encerra em si mesma a semente da mudança. Ao reflectir o tempo como entidade dúplice — instante de criação e contínuo de destruição — ela inscreve-se e inscreve-nos na tradição e na alteridade. Por outro lado, o facto de as ruínas não terem todas o mesmo tempo de nascimento (ainda que, com frequência, na pintura, idealmente, elas reflictam um momento de ouro, de inequívoca inspiração clássica), permite-nos pensar a sobreposição ou sedimentação cronológica, ou seja, possibilita-nos a sua actualização. A sua inscrição na contemporaneidade.

2. A actualização do tema ruína

Ao contrário do evocado pela ruína na sua representação histórica, tradicional, a opção de Martinho Costa, nesta sua pintura, confronta-nos com a evidência de um tempo excessivamente rápido e voraz na criação de destroços.
Nas ruínas aqui representadas, os edifícios não são antigos, construídos com materiais nobres como a pedra, ornados de frontões e colunadas. Não resistiram, durante séculos, à erosão e ao apagamento. Não foram tombando, pedra a pedra, com os anos, nem tomados de assalto pela natureza que, na ausência do homem, se reapodera dos seus feitos, infiltrando-se e apagando-os. Pelo contrário. Os edifícios escolhidos para esta pintura são nossos contemporâneos, construídos em betão ou em madeira — e ainda há pouco.
As linhas destas novas ruínas não evocam palácios nem templos, compondo cenários grandiosos. Antes se perfilam como estruturas racionalizadas, geométricas e simples, cuja construção, rápida e eficaz, se destinou a fins específicos. Os seus programas foram tão claros como o seu tempo de vida: erguidos para serem apenas úteis, o fim da sua utilidade ditou o seu termo. Sem tempo para esperar que a dureza dos elementos apague a pouco a pouco a frescura dos seus traços, a destruição é-lhes ditada por imperativos pragmáticos. O seu tempo de vida foi curto. Excessivamente breve. A sua destruição pode ser operada por vários factores: acidente, incidente, acto voluntário; terrorismo, decisão urbanística, decisão comercial.
A memória tem falhas e alimenta uma situação de Ahlzeimer social. A renovação é exigida por um tecido urbano em constante mutação, em luta com um espaço comum de memória e uma urgência de intervir, de ganhar terreno e dinheiro. É certo que a fúria dos elementos pode ter aí uma palavra a dizer. Mas também neste aspecto a ruína é actualizada, já que não remete para castigos divinos (cataclismos bíblicos), mas para catástrofes naturais.
Não há por isso sacralidade nem contida emoção na contemplação destas novas ruínas. Há, meramente, o testemunho de um instante. A noção de um tempo demasiado fugaz. Em que nada (ou muito pouco) permanecerá para dar conta das nossas produções aos vindouros.

3. A ruína instantânea
                                                  
Num período histórico como o actual, em que se cultiva uma aguda consciência da importância da preservação da memória, levando a que por vezes se comprometa o crescimento presente com a manutenção, a todo o custo, de edifícios velhos (não antigos) cuja relevância arquitectónica e histórica é por de mais discutível, apagam-se contudo com grande facilidade os registos da produção do nosso próprio tempo.
Podemos, portanto, afirmar que convivemos actualmente com pelo menos dois tipos de ruína: a de edifícios com algumas décadas, que se mantêm de pé, graças a constantes, excessivas e por vezes incongruentes intervenções, e a outra, constituída por construções menos antigas e mais “descartáveis”; como se tornada ruína antes de tempo. Esta não apenas se degrada com excessiva rapidez (como se os materiais usados comprometessem, desde o nascimento e deliberadamente, o seu tempo de vida), como é também “abatida”, sem apelo nem agravo, sem que nada dela sobreviva.
É justamente desta última que se ocupa Martinho Costa. Daquela de que nada fica. A não ser o instante da imagem captada no acto da destruição.
O momento de desconstrução é a evocação da fragilidade da matéria, da sua não perenidade. A tela que evoca, como num instantâneo (de notar que todas estas imagens de Martinho Costa são instantâneos) a passagem, numa rua, do veículo que vai contribuir para a demolição, aponta para a passagem do instante.
Actualizando os diários de viagens e as pinturas (as vedute) que, no regresso do Grand Tour, se exibiam, como há escassos anos se coleccionavam postais ilustrados e hoje carregamos cartões de memória com centenas de fotografias digitais, as obras de Martinho Costa remetem para os fazedores (anónimos, aparentemente sem identidade — a redacção vazia evoca a impersonalização das fontes da informação, da mediatização das imagens, de bancos de imagens, multiplicadas à saturação) das imagens, das notícias.
Assim, para o pintor, a ruína é também o sinal da desolação e destruição (despojo, mero vestígio) da paisagem, já não retratada como povoada por caprichosas construções sobre as quais o tempo foi ficcionado (ficção dentro de ficção, já que o capricho é, por definição, a criação de uma paisagem ficcional), mas como destroço, um lugar no qual a fantasia é substituída por actos de violento pragmatismo. O romantismo indiciado no capricho dá lugar à visão da natureza como parte de um mundo de coisas (objectivado) a usar e despojar. Muito longe desse mundo, neste outro de objectos descartáveis, em que tudo está à beira do apagamento, até nós, a ruína torna-se a metáfora absoluta, invadindo todos os recantos da paisagem e das nossas vidas. Como adiante veremos.

4. A escolha das imagens

O conjunto destas quase quatro dezenas de obras de pintura reunidas neste volume tem uma base muito concreta e notória: a fotografia. Actualizando também a utilização de um recurso técnico que se tornou mais frequente a partir de meados do século XIX, Martinho Costa opta pela imagem fotográfica como ponto de partida para a elaboração das suas pinturas. Não sente, por isso, necessidade de desenhar, recorrendo antes à projecção dessa matriz imagética sobre a tela e sintetizando pictoricamente o que vê, à medida que a mão e as tintas avançam sobre o suporte.
O resultado do seu trabalho é, deste modo, a análise e a depuração das “tomadas” originais. Mas de que imagens se trata, afinal? Como escolhe ele o que representar? Para Martinho Costa esta questão tem uma resposta quase óbvia: a internet, fonte inesgotável de imagens, pode a um tempo fornecer fontes iconográficas da mais diversa natureza. Recolhidas quase ao acaso ou através de busca dirigida (neste caso, sob o tema da demolição), o seu único fio condutor é o do registo de um momento em que algo está a acontecer ou já aconteceu.
Ou seja: o que nesta obra se inscreve é a assunção de que apenas o que acolhe o caos é passível de ser representado. Ou, como diria Tolstoi, na frase inaugural de Anna Karenina,  “as famílias felizes não têm história”. Ou, como sugeririam os gregos, apenas o pathos propicia a narrativa. Por isso, esta representação busca o sentido no instante mediático, naquele que se pode constituir como o grau 1 da narrativa. Aquele em que se enuncia a dúvida: e agora?
Estas imagens que, deliberadamente, não partem de esboços nem de notas tomadas pelo autor, nem nascem sequer do seu olhar filtrado por uma câmara, mas que resultam de pesquisas orientadas num buscador de internet, têm, além disso, uma outra valia: o facto de o libertar, enquanto pintor, de um enquadramento inicial, consciente. O enquadramento seguinte, após a escolha da fotografia, já é feito com o objectivo da sua representação pictórica posterior. Liberto do olhar fotográfico e assumindo esse exercício, desde a raiz, como um labor conscientemente pictórico, o capricho, tal como Martinho Costa o actualiza, revela-se exercício de enquadramento, ponto de vista.
Apesar da matriz fotográfica, a pintura resultante não é, como facilmente se percebe, mera ampliação do original. Sobre cada imagem, Martinho Costa trabalha um novo enquadramento, ordenando as suas prioridades em termos de enfoque. O resultado à parte a já mencionada síntese operada pela pintura, e que se torna tanto mais aparente quando mais nos aproximamos para a ver, na fragmentação da pincelada (mais texturada nos formatos pequenos, mais lisa nos formatos maiores [4]) apresenta uma maior densidade de acção ou um foco mais complexo de informação do que o do seu ponto de partida.

5. Fugir do mediático e do facilmente belo

Como já notámos, a escolha que assim se opera oferece, por um lado, a possibilidade de trabalhar sobre o olhar de outras pessoas (a fotografia original) e, por outro, a de recolher imagens oriundas de todos os pontos do globo.
Apesar desse elemento de diversidade, a globalização e a estrutura que orienta a escolha das imagens originais, conduz a que sejamos levados a pensar inevitavelmente em noticiários, em fotogramas que captam instantes de calamidades, de destruição deliberada. Contudo, não obstante ser esse o mote inicial, as pinturas tentam mitigar o efeito mediático. Por um lado, através da sua esquiva forma de identificação.
Com efeito, o facto de as obras serem definidas como sem título liberta-as de uma pertença imediata a um local ou a um acontecimento. Ainda assim, ao sem título é depois anexado uma informação, uma nota descritiva que tem como objectivo direccionar a atenção para pormenores compositivos. Deste modo, encontramos “pistas” como Viaduto, Alpinistas, Torre 1, Demolidor, Ponte, Camião de Exteriores, Eurovia, Turbina, Dallas 1, Avião, Pala, Atentado, Manifestação (duas raras cenas nocturnas), Postes, Fundações, Hipermercado, Interior #2, Color Bank, Interior #3, Estátua, Viaduto #1, Inundação em Veneza, Stripper, Interior #1, Inundação, Fachada, e Komatsu, na primeira série do livro e, na série Ruína, “pistas” como Planet Ho, Inundação, Casa, Os Quatro, Interior, Vivenda, Palmeira, Navio, Vala, Timberland, Depósito de Água, Reciclagem, Entulho, The Met, Dallas, X, Pro Green, Nokia Theater, Parabolic Antenna, Lago, Kmox, Armazém, Clareira, Torre, Coda e Demo One.

Por outro lado, a escolha da paleta, embora permita o contraste necessário à clara compreensão dos elementos representados, não acentua a cenografia da guerra, do confronto, do efeito que facilmente captura o olhar. Por isso mesmo, nesta maioria de obras que retratam instantes apanhados sob a clara do sol (raras são, como vimos, as “tomadas” de noite — neste conjunto de 39 pinturas, encontramos apenas duas) é notória a atenção ao que o pintor define como uma vontade de não diferenciação, ou seja, a rejeição ao excessivamente mediático, ao sonoro espectáculo apetecido às televisões. E é precisamente ao destituí-las desse peso, permitindo-nos olhar para elas de um modo novo, na sua tranquilidade e inexorabilidade final, que aí reencontramos de novo a tradição da pintura.
Isso acontece porque, apesar de as imagens ostentarem essa evidente carga informativa, Martinho Costa as trabalha como matéria eminentemente pictórica, isto é, usa-as para explorar o seu potencial na e através da pintura. Rejeitando à partida as imagens mais compostas, mais facilmente agradáveis e harmoniosas, desconfiando do “bonito” como conceito facilitador, procura e escolhe imagens em que o caos estrutural, compositivo, esteja claramente presente. Não apenas um caos identificável na ordem (ou desordem) do acontecimento — note-se como os seus céus tranquilos, benignos, acompanham cenas de destruição. Mas um caos que se reconhece na complexidade das linhas, das texturas, das cores e dos seus efeitos lumínicos. Uma desordem que, por ser pictórica e só por isso, serve, muito adequadamente, os seus propósitos de representação da ruína.
Semelhantes pressupostos, como vimos, reiteram uma escolha de imagens que não aponta na direcção do belo, do composto, da ruína emoldurada pelo sagrado de um tempo longo e instaurado pela história; e, nesse sentido, indicam-nos já o caminho para o nosso tempo. A melancolia que a ruína devia dar-nos, no século XVIII, já não existe nestas pinturas. Pelo menos não da mesma maneira. Já não nos envolve na aura de um pretérito longo e perfeito, de que nos sentimos saudosos. Antes nos aponta uma aguda sensação de finitude num quadro geral de efemeridade, de banalidade. Que pertença podemos então evocar perante tais ruínas?

6. Despojos de um tempo que escassamente esculpe

Num momento histórico em que a população mundial aumenta exponencialmente e em que a construção acompanha (e em alguns casos ultrapassa) as necessidades mais imediatas de alojamento e dos mais diversos equipamentos, a nossa ânsia construtiva apenas encontra paralelo na voragem do seu apagamento. Essa erosão irrompe por todos os sectores da vida quotidiana, desde a descartabilidade dos objectos, à fragilidade do tecido social, até à negação da memória. Se as estradas, viadutos, pontes e tantos belos monumentos antigos permaneceram até hoje, mesmo que em ruína, mesmo que com a ajuda de campanhas de recuperação, não é certo que as construções actuais permaneçam para lá de escassas gerações.
Como se representam, então, essas novas ruínas, que não têm tempo de o ser? Neste caso, na não dramaticidade da sua perda. Na recusa de, para além do acidente, para além do atentado ou do desastre natural, o olhar se comprazer com a narrativa do drama. Por isso, essa pintura não chora o que se perde. Aponta. Regista. Analisa. Com linhas, cores, tons. Efeitos lumínicos que, rejeitando o estrondo da abertura de telejornal, nos dão os efeitos objectivos e objectivados do que aconteceu. 
Como nos relacionamos com estas ruínas? De modo porventura dúbio, claramente dependente da nossa própria memória, da nossa capacidade de significarmos o que vemos, de empossarmos simbolicamente o que se perde.
Retomemos um aspecto crucial: para lá da acção, reconhecível por todos e emocionante pela evidência da sua existência, a não identificação dos lugares e dos edifícios (com a excepção mais notória da imagem que de imediato se reconhece como pertencente à Praça de S. Marcos, em Veneza) é um dos elementos essenciais na escolha do pintor. Esse apagamento do lugar específico pode ser lido de duas maneiras: por um lado, abre, para cada imagem, a possibilidade da sua universalidade. Nesse sentido, englobando-nos a todos igualmente, atinge-nos no seio da nossa frágil temporalidade, num mundo caótico e precário do qual todos fazemos parte e em cuja ruína nos reencontramos. Porém, a ausência de drama nestas imagens relembra-nos que o que aqui vemos não é a realidade, mas uma sua re-presentação, uma sua síntese, um olhar pictórico sobre o caos. Assim nos descansamos. Assim nos reconfortamos.

7. Um último instante

As ruínas de Martinho Costa têm um grau de atenção ao tempo que as integra no tempo. São, como facilmente reconhecemos, imagens de hoje. E, nesse sentido também, imagens que facilmente serão datáveis daqui a algum tempo. Posicionando-se simultaneamente como criador e espectador de um corpus iconográfico, o pintor assiste também ao passar do tempo sobre as suas pinturas, interessando-lhe perceber como é que estas ruínas irão envelhecer, perdendo actualidade, denotando um tempo de criação.
Por tudo isso, estas ruínas, apesar de tranquilas e enunciadoras (mais do que denunciadoras, não é de mais afirmá-lo) indiciam não apenas a ruína do tempo (patente no desmoronar dos edifícios ou na degradação de espaços públicos), como a das nossas vidas, na sua fragilidade, na sua mortalidade: o desabamento do lar, a desolação que se abate sobre o espaço íntimo, pessoal, privado, é o desabar da nossa estrutura mais íntima. Aqui se constata. Sem se julgar.
Se a introdução desse elemento pessoal, privado, familiar, é mais um dos sinais da actualização do tema (algo que nem a ruína nem o capricho nos dão), estas obras mantêm, contudo, alguns dos pressupostos clássicos da representação da ruína, como a tentativa de manter visível e clara a ordem aparente do edifício, antes da sua destruição, ou a introdução da figura humana como medida da escala do edifício.
E, nesse aspecto, a melancolia perante o fim não sendo equiparável, como vimos, à sua poética setecentista, reinventa o sentimento para a contemporaneidade, estabelecendo ainda pontes com a tradição.
Na memória deste olhar que aqui encerra as suas deambulações sobre estas pinturas de Martinho Costa, surgem as propostas de inquietação: nestas obras, tal como em Guardi, o silêncio que as figuras presentes ostentam é notório. Elas vivem, solitárias e mudas, o testemunho do fim. Quase sempre alheadas da nossa presença, ensimesmadas na realidade pictórica que as acolhe e constitui, elas não dialogam com o espectador. A ruína é total. Não só no desmoronar das construções, como no desabar da comunicação. Diz quem observa: é o nosso silêncio que ali ecoa.





[1] In “Ruines (esthétique)”, Encyclopædia Universalis, Corpus 20, Enciclopædia Universalis, Éditeur à Paris, 1989, p. 346.

[2] In painting, as in literature, the ruin often furnishes the landscape in which a narrative is set. As an element of landscape, however, ruins constitute the background of the principal representation. The caprice represents the move of the ruin in painting from the background to the status of subject. We can speak of the poetics of a representation when it has become the subject of invention and thus a work of art unto itself. In the case of the caprice painting, ruined architecture has become the focal point of the artist's invention.” In AUGUSTYN, Joanna — “Subjectivity in the fictional ruin: The caprice genre”. In The Romanic Review, Vol. 91, 2000. http://findarticles.com/p/articles/mi_qa3806/is_200011/ai_n8906370. [p. 1]


[3] Como refere Alberto Ustárroz, as ruínas são para o arquitecto “un pasado visto como soporte, no como un sistema cerrado; un continuum que se selecciona y afila com el presente”. In La lección de las Ruinas: Presencia del pensamiento griego y del pensamiento romano en la arquitectura. Barcelona: Fundación Caja de Arquitectos, 1997, p. 11.

[4] A escolha da dimensão da tela revela uma perspectiva extra: um aguçar e depurar do representado.