1. A ruína como tema artístico
Poderosa metáfora para o tempo, a ruína tem, como elemento
pictórico, história própria. Tardia no Ocidente, surge, no final da Idade
Média, como fundo de paisagem e afirma-se apenas quando o Renascimento anuncia
os seus pressupostos. Petrarca é geralmente apontado como o primeiro italiano —
e o primeiro Ocidental — a mencionar o gosto
pela ruína. O Renascimento adopta-a então, ora como elemento cenográfico,
simbólico do conhecimento dos antigos (em alguns retratos de ilustres
humanistas, por exemplo), ora em obras de cariz religioso, como as
representações da natividade, figurando como alegoria da ordem nascente sobre
os escombros do paganismo. A ruína emerge assim como a enunciação inequívoca de
um novo tempo. Da efemeridade da vida e da sedimentação do peso dos dias sobre
a paisagem.
O Barroco notabilizá-la-á como sinónimo de belo. Ao
descobrir a beleza da velhice, cria uma nova “categoria do belo, o bizarro” [1],
na qual o velho toma o mais apelativo
rosto de antigo. E, assim, do mesmo
modo que, então, a escultura passa a mostrar, amorosamente, os aspectos até aí
vistos como tenebrosos, do esqueleto (ruína do corpo, etapa final da nossa
história pessoal, derradeiro aspecto de diferenciação — e de indiferenciação,
também, já que a morte é a grande igualizadora — antes de nos tornarmos pó),
também a pintura acolhe as representações da paisagem pontuada de ruínas.
Em alguns casos, como é notório em gravuras de René-Jacques
Charpentier ou de Giovanni Baptista Piranesi, nas cenas de ruínas associam-se
várias imagens de morte: a dos edifícios, das civilizações e dos homens.
Esqueletos humanos ou urnas de homens célebres convivem com destroços de
palácios, templos ou monumentos. A morte reina sobre o que antes foi vivo e
poderoso — e que, mesmo na destruição, mantém o seu irresistível apelo, o seu
encantatório chamamento.
Do gosto da representação da paisagem natural, ao das vedute, para sempre associadas a Veneza,
a Canaletto e Francesco Guardi e ao exercício educativo do Grand Tour (a viagem empreendida no século XVIII, pelos jovens de
classes abastadas, para complemento da sua educação, que assim se enriquecia
com o contacto com o mundo e os
vestígios de outros tempos e culturas), retomou-se o gosto da vista melhorada — que os flamengos já
haviam inventado na representação da paisagem natural.
Assim, se a veduta,
tal como a definia Canaletto, era tomada "dal vero" — ou seja, mesmo
alterada, melhorada, como tantas vezes se encontra em Guardi, a paisagem
retratada era supostamente reflexo da realidade — já a da ruína, enquanto
elemento central na pintura [2],
era guardada para um exercício de estilo: os caprichos.
Estas "vedute ideate", literalmente vistas idealizadas, como lhes chamava
Canaletto, eram paisagens compostas com elementos inventados. Com a novidade,
em relação aos flamengos, de que os “organismos estranhos” nelas introduzidos
não eram montanhas, nem quaisquer outros acidentes de terreno, mas edifícios
que tinham como particularidade interessante o facto de se encontrarem
semi-destruídos.
Essas arquitecturas parciais — exercícios do fragmento que,
tomado como objecto de culto, é tornado epicentro do fenómeno da representação,
encenando e evocando um tempo simultaneamente perfeito e perdido — mimam o real
e projectam uma poética que o actualiza, ordenando-o de acordo com a imaginação
do autor, que assim cria as suas próprias arquitecturas perfeitas e se integra
na tradição, reformulando-a. O desenho e a pintura, criadores desses não-lugares
que constituem os caprichos, espaços
desabitados e abandonados, onde o pretérito se enraíza, encenam o salto
cronológico; apoderam-se do tempo: um tempo que alimenta a nossa emoção.
O século XVIII, juntando à beleza a consciência temporal,
mostrar-nos-á a ruína como o belo ameaçado pela morte. Hubert Robert,
porventura o pintor francês mais associado à escolha da ruína como tema
preferencial (graças também à crítica de Diderot, por ocasião do Salon de 1767,
na qual o pintor apresentou mais de duas dezenas de obras em que figuravam
arquitecturas imaginárias), tratou-a com especial atenção, coroando-a com
frequência com uma luz dourada, oriunda de céus altos e majestosos.
A finitude torna-se tema central: tudo tem um fim, tudo está
ameaçado; até o que foi construído para durar, até o que, pelas suas qualidades
intrínsecas, mereceria ser perene. Mereceria permanecer, para nossa eterna
contemplação. A ruína surge, portanto, nestes anos (e, em muitos modos, assim
se mantém), como alegoria do tempo. Consciência do que a sua passagem opera
sobre o mundo, a reflexão sobre o final, sobre a vanidade de tudo face ao
grande apagamento, abrirá caminho ao romantismo. Desse tempo longo tirará ainda
o século XIX a noção de história, de pertença, de cultura. De património. Até
de nacionalidade. As ruínas configurar-se-ão assim como elementos fundadores da
nossa identidade e da nossa cultura, traços que legitimam a nossa permanência
num território e que inspirarão a nossa produção futura [3].
Como referirá George Steiner, a ruína é a memória; e é, por isso mesmo,
elemento constituinte do que somos.
Por tudo isto, a ruína, como conceito, encerra em si mesma a
semente da mudança. Ao reflectir o tempo como entidade dúplice — instante de
criação e contínuo de destruição — ela inscreve-se e inscreve-nos na tradição e
na alteridade. Por outro lado, o facto de as ruínas não terem todas o mesmo
tempo de nascimento (ainda que, com frequência, na pintura, idealmente, elas
reflictam um momento de ouro, de
inequívoca inspiração clássica), permite-nos pensar a sobreposição ou
sedimentação cronológica, ou seja, possibilita-nos a sua actualização. A sua
inscrição na contemporaneidade.
2. A actualização do tema ruína
Ao contrário do evocado pela ruína na sua representação
histórica, tradicional, a opção de Martinho Costa, nesta sua pintura,
confronta-nos com a evidência de um tempo excessivamente rápido e voraz na
criação de destroços.
Nas ruínas aqui representadas, os edifícios não são antigos,
construídos com materiais nobres como a pedra, ornados de frontões e colunadas.
Não resistiram, durante séculos, à erosão e ao apagamento. Não foram tombando,
pedra a pedra, com os anos, nem tomados de assalto pela natureza que, na
ausência do homem, se reapodera dos seus feitos, infiltrando-se e apagando-os.
Pelo contrário. Os edifícios escolhidos para esta pintura são nossos
contemporâneos, construídos em betão ou em madeira — e ainda há pouco.
As linhas destas novas ruínas não evocam palácios nem
templos, compondo cenários grandiosos. Antes se perfilam como estruturas
racionalizadas, geométricas e simples, cuja construção, rápida e eficaz, se
destinou a fins específicos. Os seus programas foram tão claros como o seu
tempo de vida: erguidos para serem apenas úteis, o fim da sua utilidade ditou o
seu termo. Sem tempo para esperar que a dureza dos elementos apague a pouco a
pouco a frescura dos seus traços, a destruição é-lhes ditada por imperativos
pragmáticos. O seu tempo de vida foi curto. Excessivamente breve. A sua
destruição pode ser operada por vários factores: acidente, incidente, acto
voluntário; terrorismo, decisão urbanística, decisão comercial.
A memória tem falhas e alimenta uma situação de Ahlzeimer social. A
renovação é exigida por um tecido urbano em constante mutação, em luta com um
espaço comum de memória e uma urgência de intervir, de ganhar terreno e
dinheiro. É
certo que a fúria dos elementos pode ter aí uma palavra a dizer. Mas também
neste aspecto a ruína é actualizada, já que não remete para castigos divinos
(cataclismos bíblicos), mas para catástrofes naturais.
Não há por isso sacralidade nem contida emoção na
contemplação destas novas ruínas. Há, meramente, o testemunho de um instante. A
noção de um tempo demasiado fugaz. Em que nada (ou muito pouco) permanecerá
para dar conta das nossas produções aos vindouros.
3. A ruína instantânea
Num período histórico como o actual, em que se cultiva uma
aguda consciência da importância da preservação da memória, levando a que por
vezes se comprometa o crescimento presente com a manutenção, a todo o custo, de
edifícios velhos (não antigos) cuja
relevância arquitectónica e histórica é por de mais discutível, apagam-se
contudo com grande facilidade os registos da produção do nosso próprio tempo.
Podemos, portanto, afirmar que convivemos actualmente com
pelo menos dois tipos de ruína: a de edifícios com algumas décadas, que se mantêm
de pé, graças a constantes, excessivas e por vezes incongruentes intervenções,
e a outra, constituída por construções menos antigas e mais “descartáveis”; como
se tornada ruína antes de tempo. Esta não apenas se degrada com excessiva
rapidez (como se os materiais usados comprometessem, desde o nascimento e
deliberadamente, o seu tempo de vida), como é também “abatida”, sem apelo nem
agravo, sem que nada dela sobreviva.
É justamente desta última que se ocupa Martinho
Costa. Daquela de que nada fica. A não ser o instante da imagem captada no acto
da destruição.
O momento de desconstrução é a evocação da fragilidade da
matéria, da sua não perenidade. A tela que evoca, como num instantâneo (de
notar que todas estas imagens de Martinho Costa são instantâneos) a passagem, numa rua, do veículo que vai contribuir
para a demolição, aponta para a passagem do instante.
Actualizando os diários de viagens e as pinturas (as vedute) que, no regresso do Grand Tour,
se exibiam, como há escassos anos se coleccionavam postais ilustrados e hoje
carregamos cartões de memória com centenas de fotografias digitais, as obras de
Martinho Costa remetem para os fazedores (anónimos, aparentemente sem
identidade — a redacção vazia evoca a impersonalização das fontes da
informação, da mediatização das imagens, de bancos de imagens, multiplicadas à
saturação) das imagens, das notícias.
Assim, para o pintor, a ruína é também o sinal da desolação
e destruição (despojo, mero vestígio) da paisagem, já não retratada como
povoada por caprichosas construções sobre as quais o tempo foi ficcionado
(ficção dentro de ficção, já que o capricho é, por definição, a criação de uma
paisagem ficcional), mas como destroço, um lugar no qual a fantasia é
substituída por actos de violento pragmatismo. O romantismo indiciado no capricho dá lugar à visão da natureza
como parte de um mundo de coisas (objectivado) a usar e despojar. Muito longe
desse mundo, neste outro de objectos descartáveis, em que tudo está à beira do
apagamento, até nós, a ruína torna-se a metáfora absoluta, invadindo todos os
recantos da paisagem e das nossas vidas. Como adiante veremos.
4. A escolha das imagens
O conjunto destas quase quatro dezenas de obras
de pintura reunidas neste volume tem uma base muito concreta e notória: a
fotografia. Actualizando também a utilização de um recurso técnico que se
tornou mais frequente a partir de meados do século XIX, Martinho Costa opta
pela imagem fotográfica como ponto de partida para a elaboração das suas
pinturas. Não sente, por isso, necessidade de desenhar, recorrendo antes à
projecção dessa matriz imagética sobre a tela e sintetizando pictoricamente o
que vê, à medida que a mão e as tintas avançam sobre o suporte.
O resultado do seu trabalho é, deste modo, a
análise e a depuração das “tomadas” originais. Mas de que imagens se trata,
afinal? Como
escolhe ele o que representar? Para Martinho Costa esta questão tem uma
resposta quase óbvia: a internet, fonte inesgotável de imagens, pode a um tempo
fornecer fontes iconográficas da mais diversa natureza. Recolhidas quase ao
acaso ou através de busca dirigida (neste caso, sob o tema da demolição), o seu
único fio condutor é o do registo de um momento em que algo está a acontecer ou já aconteceu.
Ou seja: o que nesta obra se inscreve é a assunção de que
apenas o que acolhe o caos é passível de ser representado. Ou, como diria
Tolstoi, na frase inaugural de Anna Karenina,
“as famílias felizes não têm história”. Ou, como sugeririam os gregos,
apenas o pathos propicia a narrativa.
Por isso, esta representação busca o sentido no instante mediático, naquele que
se pode constituir como o grau 1 da narrativa. Aquele em que se enuncia a
dúvida: e agora?
Estas imagens que, deliberadamente, não partem
de esboços nem de notas tomadas pelo autor, nem nascem sequer do seu olhar
filtrado por uma câmara, mas que resultam de pesquisas orientadas num buscador
de internet, têm, além disso, uma outra valia: o facto de o libertar, enquanto pintor, de um enquadramento
inicial, consciente. O enquadramento seguinte, após a escolha da fotografia, já
é feito com o objectivo da sua representação pictórica posterior. Liberto do
olhar fotográfico e assumindo esse exercício, desde a raiz, como um labor
conscientemente pictórico, o capricho,
tal como Martinho Costa o actualiza, revela-se exercício de enquadramento,
ponto de vista.
Apesar da matriz fotográfica, a pintura
resultante não é, como facilmente se percebe, mera ampliação do original. Sobre
cada imagem, Martinho Costa trabalha um novo enquadramento, ordenando as suas
prioridades em termos de enfoque. O resultado — à parte a já mencionada síntese operada pela pintura, e que se torna
tanto mais aparente quando mais nos aproximamos para a ver, na fragmentação da
pincelada (mais texturada nos formatos pequenos, mais lisa nos formatos maiores
[4]) — apresenta uma maior densidade de acção ou um
foco mais complexo de informação do que o do seu ponto de partida.
5. Fugir do mediático e do facilmente belo
Como já notámos, a escolha que assim se opera
oferece, por um lado, a possibilidade de trabalhar sobre o olhar de outras
pessoas (a fotografia original) e, por outro, a de recolher imagens oriundas de
todos os pontos do globo.
Apesar desse elemento de diversidade, a globalização e a
estrutura que orienta a escolha das imagens originais, conduz a que sejamos
levados a pensar inevitavelmente em noticiários, em fotogramas que captam
instantes de calamidades, de destruição deliberada. Contudo, não obstante ser
esse o mote inicial, as pinturas tentam mitigar o efeito mediático. Por um
lado, através da sua esquiva forma de identificação.
Com efeito, o facto de as obras serem definidas como sem título liberta-as de uma pertença
imediata a um local ou a um acontecimento. Ainda assim, ao sem título é depois anexado uma informação, uma nota descritiva que
tem como objectivo direccionar a atenção para pormenores compositivos. Deste
modo, encontramos “pistas” como Viaduto,
Alpinistas, Torre 1, Demolidor, Ponte, Camião de Exteriores, Eurovia, Turbina,
Dallas 1, Avião, Pala, Atentado, Manifestação (duas raras cenas nocturnas),
Postes, Fundações, Hipermercado, Interior
#2, Color Bank, Interior #3, Estátua, Viaduto #1, Inundação em Veneza,
Stripper, Interior #1, Inundação, Fachada, e Komatsu, na primeira série do livro e, na série Ruína, “pistas”
como Planet Ho, Inundação, Casa, Os
Quatro, Interior, Vivenda, Palmeira, Navio, Vala, Timberland, Depósito de Água,
Reciclagem, Entulho, The Met, Dallas, X, Pro Green, Nokia Theater, Parabolic
Antenna, Lago, Kmox, Armazém, Clareira, Torre, Coda e Demo One.
Por outro lado, a escolha da paleta, embora permita o
contraste necessário à clara compreensão dos elementos representados, não
acentua a cenografia da guerra, do confronto, do efeito que facilmente captura
o olhar. Por isso mesmo, nesta maioria de obras que retratam instantes
apanhados sob a clara do sol (raras são, como vimos, as “tomadas” de noite —
neste conjunto de 39 pinturas, encontramos apenas duas) é notória a atenção ao
que o pintor define como uma vontade de não
diferenciação, ou seja, a rejeição ao excessivamente mediático, ao sonoro
espectáculo apetecido às televisões. E é precisamente ao destituí-las desse
peso, permitindo-nos olhar para elas de um modo novo, na sua tranquilidade e
inexorabilidade final, que aí reencontramos de novo a tradição da pintura.
Isso acontece porque, apesar de as imagens ostentarem essa
evidente carga informativa, Martinho Costa as trabalha como matéria
eminentemente pictórica, isto é, usa-as para explorar o seu potencial na e
através da pintura. Rejeitando à partida as imagens mais compostas, mais
facilmente agradáveis e harmoniosas, desconfiando do “bonito” como conceito
facilitador, procura e escolhe imagens em que o caos estrutural, compositivo,
esteja claramente presente. Não apenas um caos identificável na ordem (ou
desordem) do acontecimento — note-se como os seus céus tranquilos, benignos,
acompanham cenas de destruição. Mas um caos que se reconhece na complexidade
das linhas, das texturas, das cores e dos seus efeitos lumínicos. Uma desordem
que, por ser pictórica e só por isso, serve, muito adequadamente, os seus
propósitos de representação da ruína.
Semelhantes pressupostos, como vimos, reiteram uma escolha
de imagens que não aponta na direcção do belo, do composto, da ruína emoldurada
pelo sagrado de um tempo longo e instaurado pela história; e, nesse sentido,
indicam-nos já o caminho para o nosso tempo. A melancolia que a ruína devia
dar-nos, no século XVIII, já não existe nestas pinturas. Pelo menos não da
mesma maneira. Já não nos envolve na aura de um pretérito longo e perfeito, de
que nos sentimos saudosos. Antes nos aponta uma aguda sensação de finitude num
quadro geral de efemeridade, de banalidade. Que pertença podemos então evocar
perante tais ruínas?
6. Despojos de um tempo que escassamente esculpe
Num momento histórico em que a população mundial
aumenta exponencialmente e em que a construção acompanha (e em alguns casos
ultrapassa) as necessidades mais imediatas de alojamento e dos mais diversos
equipamentos, a nossa ânsia construtiva apenas encontra paralelo na voragem do
seu apagamento. Essa erosão irrompe por todos os sectores da vida quotidiana,
desde a descartabilidade dos objectos, à fragilidade do tecido social, até à
negação da memória. Se as estradas, viadutos, pontes e tantos belos monumentos
antigos permaneceram até hoje, mesmo que em ruína, mesmo que com a ajuda de
campanhas de recuperação, não é certo que as construções actuais permaneçam
para lá de escassas gerações.
Como se representam, então, essas novas ruínas,
que não têm tempo de o ser? Neste caso, na não dramaticidade da sua perda. Na
recusa de, para além do acidente, para além do atentado ou do desastre natural,
o olhar se comprazer com a narrativa do drama. Por isso, essa pintura não chora
o que se perde. Aponta. Regista. Analisa. Com linhas, cores, tons. Efeitos
lumínicos que, rejeitando o estrondo da abertura de telejornal, nos dão os
efeitos objectivos e objectivados do que aconteceu.
Como nos relacionamos com estas ruínas? De modo
porventura dúbio, claramente dependente da nossa própria memória, da nossa
capacidade de significarmos o que vemos, de empossarmos simbolicamente o que se
perde.
Retomemos um aspecto crucial: para lá da acção, reconhecível
por todos e emocionante pela evidência da sua existência, a não identificação
dos lugares e dos edifícios (com a excepção mais notória da imagem que de
imediato se reconhece como pertencente à Praça de S. Marcos, em Veneza) é um
dos elementos essenciais na escolha do pintor. Esse apagamento do lugar
específico pode ser lido de duas maneiras: por um lado, abre, para cada imagem,
a possibilidade da sua universalidade. Nesse sentido, englobando-nos a todos
igualmente, atinge-nos no seio da nossa frágil temporalidade, num mundo caótico
e precário do qual todos fazemos parte e em cuja ruína nos reencontramos.
Porém, a ausência de drama nestas imagens relembra-nos que o que aqui vemos não
é a realidade, mas uma sua re-presentação,
uma sua síntese, um olhar pictórico sobre o caos. Assim nos descansamos. Assim
nos reconfortamos.
7. Um último instante
As ruínas de Martinho Costa têm um grau de atenção ao tempo
que as integra no tempo. São, como facilmente reconhecemos, imagens de hoje. E,
nesse sentido também, imagens que facilmente serão datáveis daqui a algum
tempo. Posicionando-se simultaneamente como criador e espectador de um corpus iconográfico, o pintor assiste
também ao passar do tempo sobre as suas pinturas, interessando-lhe perceber
como é que estas ruínas irão envelhecer, perdendo actualidade, denotando um
tempo de criação.
Por tudo isso, estas ruínas, apesar de tranquilas e
enunciadoras (mais do que denunciadoras, não é de mais afirmá-lo) indiciam não
apenas a ruína do tempo (patente no desmoronar dos edifícios ou na degradação
de espaços públicos), como a das nossas vidas, na sua fragilidade, na sua
mortalidade: o desabamento do lar, a desolação que se abate sobre o espaço
íntimo, pessoal, privado, é o desabar da nossa estrutura mais íntima. Aqui se
constata. Sem se julgar.
Se a introdução desse elemento pessoal, privado, familiar, é
mais um dos sinais da actualização do tema (algo que nem a ruína nem o capricho
nos dão), estas obras mantêm, contudo, alguns dos pressupostos clássicos da
representação da ruína, como a tentativa de manter visível e clara a ordem
aparente do edifício, antes da sua destruição, ou a introdução da figura humana
como medida da escala do edifício.
E, nesse aspecto, a melancolia perante o fim não sendo
equiparável, como vimos, à sua poética setecentista, reinventa o sentimento
para a contemporaneidade, estabelecendo ainda pontes com a tradição.
Na memória deste olhar que aqui encerra as suas deambulações
sobre estas pinturas de Martinho Costa, surgem as propostas de inquietação:
nestas obras, tal como em Guardi, o silêncio que as figuras presentes ostentam
é notório. Elas vivem, solitárias e mudas, o testemunho do fim. Quase sempre
alheadas da nossa presença, ensimesmadas na realidade pictórica que as acolhe e
constitui, elas não dialogam com o espectador. A ruína é total. Não só no
desmoronar das construções, como no desabar da comunicação. Diz quem observa: é
o nosso silêncio que ali ecoa.
[1] In “Ruines (esthétique)”, Encyclopædia Universalis, Corpus 20, Enciclopædia Universalis,
Éditeur à Paris, 1989, p. 346.
[2] “In painting, as in literature, the ruin
often furnishes the landscape in which a narrative is set. As an element of
landscape, however, ruins constitute the background of the principal
representation. The caprice represents the move of the ruin in painting from
the background to the status of subject. We can speak of the poetics of a
representation when it has become the subject of invention and thus a work of
art unto itself. In the case of the caprice painting, ruined architecture has
become the focal point of the artist's invention.” In AUGUSTYN,
Joanna — “Subjectivity in the fictional
ruin: The caprice genre”. In The
Romanic Review, Vol. 91, 2000. http://findarticles.com/p/articles/mi_qa3806/is_200011/ai_n8906370.
[p. 1]
[3] Como refere Alberto Ustárroz, as ruínas são para o
arquitecto “un pasado visto como soporte,
no como un sistema cerrado; un continuum
que se selecciona y afila com el presente”. In La lección de las Ruinas: Presencia del pensamiento griego y del
pensamiento romano en la arquitectura. Barcelona: Fundación Caja de
Arquitectos, 1997, p. 11.
[4] A escolha da dimensão da tela revela uma perspectiva extra:
um aguçar e depurar do representado.