Notas sobre a série Völkerwanderung (Deambulação dos povos) - Bruno Marques



A história é necessária não apenas para tornar a vida agradável, mas também para dotá-la de um significado moral. Aquilo que, em si, é mortal, atinge a imortalidade por intermédio da história: o que está ausente, torna-se presente; as coisas velhas são rejuvenescidas; e cedo, são os jovens iguais em maturidade aos velhos.

MARSILIO FICINO, 1676 (carta ao filho de Poggio Braccione).




I. BATALHAS ATÓPICAS E SEM MEMÓRIA: A EXTRAPOLAÇÃO DE ESQUEMAS HISTÓRICOS      ESVAZIADOS
Integrada na nobre "Pintura de História" - o grand genre segundo a hierarquia académica formalizada no século XVII[1] -, a Cena de Batalha serviu, desde a Antiguidade[2], de monumento comemorativo para narrar, com dimensão épica, as sagas militares factuais e míticas travadas pelos povos contemporâneos ou ancestrais. Tal temática era tida em elevada consideração na medida em que exortava a edificação pública dos ideais civis, mediante mensagens de índole moral e intelectual, invariavelmente veiculadas com um forte pendor pedagógico e propagandístico.
Tal reposição iconográfica no contexto da arte contemporânea gera um inusitado desconcerto. Dirá o visitante mais esclarecido ao mais incauto que Martinho Costa não poderá mais exercer o papel "clássico" do pintor que, por encomenda oficial, acolheu a incumbência de mitografar a glorificação de um dado reino ou país através da celebração das proezas (colectivas e individuais) granjeadas pelas batalhas memoriais que hoje preenchem os manuais escolares de História.
Depois das séries baseadas nas prosaicas imagens de automóveis anónimos em circulação (Gran Turismo), nos transeuntes captados furtivamente pelo óculo voyeur das câmaras de video-vigilância (Hall of Fame[3]) e na catalogação ora isolada ora integrada de tipologias de edifícios que compõem a definição programada do urbano[4] (feitas a partir do jogo SimCity), Martinho continua o seu ímpeto respigador de imagens que vêm enformando o nosso universo mediático contemporâneo.
Finalizada a ostensiva tematização do pixel nas idílicas paisagens forjadas pelos jogos de computador (com a série Pastoral, composta por imagens trasladadas do jogo Age of Empires), o artista transfere a sua atenção para as afamadas cenas de batalhas fabricadas digitalmente que fascinam jovens e adultos aficcionados pelo mundo das consolas e jogos para PC. E atende-se que os quis compreender depois de ter visitado os sites que os catalogam, reconhecendo que já eram pinturas per se de pleno direito.
Na presente série, intitulada Völkerwanderung (Deambulação dos povos), Martinho parece agora pintar batalhas históricas. No entanto, depois de um segundo olhar compreendemos ser vão tentar determinar o local do evento mediante um conjunto de presenças significativas, testemunhais. Esta desgarrada replicação de signos-cliché parece resultar em espelho fiel do imaginário contemporâneo. Pois não importa onde e quando. O que conta tão-somente é o espectáculo puro da acção vertiginosa e seu impacto monumental, as estonteantes movimentações das multidões, o aparato estético dos enquadramentos, seus laboriosos pontos de fuga e artifícios de proporção que seduzem o olhar em prol do deleite de penetrar num passado remoto através de uma espécie de máquina do tempo virtual (para o pintor, dispositivo alienante altamente calculado, evasão ilusória de uma realidade humana que não mais satisfaz).[5]
Problematizar o binómio obsolescência do(s) género(s) clássico(s) da pintura vs. insondáveis recuperações da Pintura de Batalhas no mundo contemporâneo, é, no caso de Martinho, transpô-la da ordem dos factos - eventos militares localizados no tempo e no espaço - para a ordem estrita dos modelos. Ou seja, trata-se de uma recursividade formal, que generaliza alguns esquemas letárgicos de representação, considerando-os linguagem vazia passível de ser instrumentalizada.
Qual o sentido, logo na obra que inaugura a série, de um fogo de artifício que converte a reconhecida cena da batalha em significação dessa ruidosa explosão de cor? Segundo o jovem pintor, esta alegoriza a própria condição do artista na actualidade. Em jeito de confissão, ele é aquele que "atira uma coisas para o ar para ser notado, para chamar atenção... ou somente para entreter". A ironia aqui é ampliada quando este o faz através do embate militar. A conversão do lançamento de dardos de fogo, em conhecido espectáculo de pirotecnia, é sintomático do esvaziamento do drama que as formas e iconografias se prestam nos nossos tempos.[6] Ou seja, o que conta neste fogo de artifício é justamente a festa, o espectáculo visual das luzes que iluminam um céu nocturno que, por sua vez, esconde uma competição interna entre jovens criadores, ainda que situados, hipocritamente, lado a lado na mesma fileira.


                              
II.  A OBLITERAÇÃO DOS PORMENORES "REALISTAS" DA GUERRA
Martinho, fiel à imagem digital que transplantou, afasta-se do fulgurante realismo do pormenor que caracteriza muitas das representações históricas do género. Ao contrário dos axiais modelos que representam, sem peia nem piedade, a mesquinhez dos horrores da guerra com todos os seus detalhes mórbidos, nas suas pinturas não existem as fileiras de soldados impassíveis jazendo mortos no chão[7], as pilhas de seres transfigurados[8], a agonia reclinada dos sujeitos trespassados por lanças ou flechas, os soldados desarmados em pânico enquanto aguardam, no chão, pelo derradeiro golpe deixado em suspenso[9]. Sem o frenesi dos cavalos derrubados[10], o arrebatamento dos gestos e manobras dos combatentes, a desoladora destruição das casas incendiadas e a inquietação entrevista nos corpos contorcidos pela dor aguda das armas cortantes, o delírio inflamado esbate-se (paradigmático em Gros e Delacroix) cedendo lugar a uma presença amorfa, mecânica, do corpo genérico inanimado que exerce uma função programada, onde a convivência entre fúria e coragem guerreira, e entre temor e desespero estampados nos rostos das vítimas, se encontra irremediavelmente imiscuída. Até as incipientes manchas de fumo contrastam igualmente com os memoráveis céus turbulentos que envolviam, em densa veladura, um longínquo horizonte normalmente composto pelos diversos matizes da poeira brilhante iluminada pelas impiedosas chamas da guerra[11].
Em Campo de Batalha #3, a cidadela no alto da colina fica acima da vaga da poeira (que não se vê!) e do turbilhão (que se imagina, mas que não se ouve!) feito pela impetuosa progressão da cavalaria. Há neste cenário uma estabilidade pré-ordenada que afasta do tumulto caótico que define a crueza física da experiência da guerra. Onde estão os despojos deixados no solo, vestígio indelével da voracidade da luta: fragmentos de lanças, armas de arremesso abandonadas, couraças perfuradas, a mancha irregular dos pedregulhos e as cavidades abertas no solo entre a horrenda mescla de lama e os restos mortais? Em suma, Martinho presenteia-nos, em tom cinicamente idílico e lúdico, a imagem requerida da guerra asséptica, clean, sem morte nem sangue...






III. "DENTRO DA CENA": A VERVE INTER-ACTIVA DO JOGO
Nas pinturas de grande formato de Martinho[12], não vemos o primeiro plano iluminado como ribalta que integra retratos que individualizam os protagonistas das cenas. O quadro histórico clássico tinha as suas leis: poucos protagonistas ordenadamente dispostos na cena, cada qual com sua paixão claramente expressa no gesto, resolvida numa acção[13]. Por detrás, a habitual massa compacta de soldados, indistintamente integrados em fileiras pontuadas apenas pela inclinação repetida das armas. Em Martinho já não se verifica a proeminência de um só plano que subordina os restantes para o fundo indistinto. Aqui, a recorrência são soldados invariavelmente virados de costas ou camuflados pelos elmos (a excepção, Campo de Batalha #4, presenteia-nos máscaras amorfas, impondo o esquema impessoal que devora o sujeito...). Progredimos com eles, no meio da chusma indistinta, não identificando personagens (heróis ou vilões).
Ainda que encarnando um visão privilegiada, é como se estivéssemos pisando o mesmo chão que aqueles sujeitos sem rosto perpassam. Daí a sensação de envolvência, de participação no evento, ecoando a supramencionada função do jogo como espécie de máquina do tempo virtual. Apesar de encontrarmos alguns equivalentes na história da pintura, o facto é que a contaminação do cinema consubstancia um tópico incontornável. Por exemplo, em Campo de Batalha #3, os três cavalos em primeiro plano parecem saltar para o espaço tridimensional da galeria. O movimento impetuoso dos cavaleiros a galope na nossa direcção coloca-nos no meio da acção. Somos, nesta cena, o operador da câmara suspensa, corpo invisível não participante mas omnisciente, colocado entre as duas fileiras rivais, momentos antes da brutalidade do embate que se aproxima.
Estamos dentro, somos jogadores, sujeitos da acção. Não se trata da arquétipa perspectiva panorâmica que nos coloca irremediavelmente de fora, numa elevação[14]. (Pela primeira vez nos trabalhos de Martinho a presença do horizonte é constante). Experienciamos o ardiloso dispositivo que cria uma expectativa de sucessão, em cuidada estratégia de concepção da imagem (como ocorre exemplarmente no cinema), que subjaz a tipologia do olhar móvel e videográfico como recusa da distância inerente à cenografia, à coreografia teatral, que fora apanágio da tradição da pintura clássica.


IV. PAISAGENS GENÉRICAS: AS INCONGRUÊNCIAS COMPOSITIVAS COMO VALOR SIMBÓLICO
O enquadramento paisagístico em Martinho é, como em qualquer cena que se inscreva na tradição da representação histórica da Batalha, determinante. São paisagens sim mas algo agrestes, desoladas e estéreis, por vezes pontuadas com edificações de época (casas ou fortificações) e outras topografias típicas (o campo aberto da planície com o fundo acidentado no horizonte - Campo de Batalha #1 e Campo de Batalha #4 - ou a vista grandiosa do interior das muralhas proporcionada pelo ponto de fuga da perspectiva euclidiana - Campo de Batalha #2).
São espaços genéricos e operativos de encenação. Por isso o repertório resulta extraordinariamente exíguo: não existem árvores, troncos caídos, manchas de grama e poças de água, nuvens móveis no céu, choupanas de camponeses esmagadas pela força colossal dos batalhões. Este leque pouco ou nada variado de soluções cénicas explana a estrita panóplia de módulos compositivos que se replicam. Trata-se, no fundo, de uma concepção anti-pituresca do espaço, por subsumir a infinita variedade de aspectos naturais habituais a formatações modulares pré-fabricadas, presas na samplagem de elementos-tipo, ou seja, trata-se de um cenário nada preocupado pelo particular do característico.
Que os objectivos da arte imperial de outrora, narrativa ou simbólica, eram por vezes incompatíveis com um tratamento realístico do espaço, torna-se plenamente evidente nesta cínica caricatura que Martinho tece a vários momentos[15]. É nessa exacta medida que as incongruências formais são, aqui, conscientes e deliberadas, fruto por um lado da padronização formal, por outro da colagem de elementos idênticos em contextos variados (muitas vezes até ironicamente retrabalhados pelo próprio pintor). A replicação passa por vezes despercebida mas está lá, resultando em adaptação artificial a funções e condições de espaço. Note-se nas bandeirinhas viradas para sentidos diversos (em Fogo de Artifício). Logo que tentamos analisar as fontes de luz, apercebemo-nos igualmente da natureza contraditória das relações espaciais entre volumes e efeitos de gradação, paradigmaticamente explanado nas sombras em encostas curiosamente direccionadas para o sentido do crepúsculo (em Campo de Batalha #3). Ou seja, trata-se de uma luz natural que se comporta como focos de luz artificial, como se a cena ocorresse num estúdio fotográfico. Mas Martinho não se fica por aqui. Na mesma obra, Campo de Batalha #3, uma desproporção gritante entre figura e cavalo presenteia-nos cavaleiros-anões inverosímeis, jokers medievais de caricatura. Situação reiterada no "retrato equestre" de anónima armadura, em Cavaleiro #1, com a energia reminescente do emblemático esquema tipificado em Napoleão Atravessando os Alpes (1800-1801) de Jacques-Louis David.
Tanto as edificações como as armas e a indumentária dos soldados remetem para a era tardo-medieval. Neste ponto, Martinho inscrever-se-ia no método da descrição exacta, com a máxima precisão histórica, em detrimento da grande manière, segundo a concepção ideal da Pintura de História à Poussin, em que as figuras se revestem com os repisados trajes clássicos. Porém, nesta operação de assemblage feita de elementos prévios - a armadura, a lança, o cavalo, a fortificação - detectamos incongruências temporais por efeito de acumulação de instâncias por vezes entre si não exactamente coetâneas, por efeito de uma coabitação que só um irónico pastiche genericamente descomprometido para com um momento histórico preciso - datável - autorizaria.


V. O SER GENÉRICO: O SUJEITO INDISTINTO (SEM ROSTO) NA MASSA ANÓNIMA
Em Fogo de Artifício as tochas ardem e as armas rodopiam no ar. Mas os "bonecos" de Martinho estão uma vez mais despossuídos de expressão facial, de direcção do olhar e de linguagem corporal. Estas cabeças sem rosto obliteram o centro natural dos dramas humanos. Não há moribundos em obstinada adesão ao destino heróico, nem semblantes desfigurados em atroz agonia suplicando por misericórdia. Em suma, não há pathos possível (não podemos interpretar sentimentos, a psicologia ou o drama do personagem).
O sujeito é submetido à frieza do esquema formal único e constante. São figuras severamente hieráticas, robôs programados reproduzindo poses e gestos humanos para significarem, esquematicamente, a iconografia da batalha. Daí resultarem descaracterizados para se obter deles modelos facilmente repetíveis: o cavaleiro, o escudeiro, o arqueiro, o porta-estandarte. O que equivale a dizer que, tal como a topografia e as edificações, o sujeito adere, em calculada frieza, ao mostruário da estrita panóplia de tipologias elementares[16].
Assim, resta-lhes apenas cumprir o papel de fantasmas deste teatro adormecido, sem a cadência ruidosa das espadas, dos gritos de guerra e dos esgares de dor, das explosões de fogo e das inebriantes cintilações dos archotes, que o cinema é tão pródigo em mostrar nas superproduções de Holywood, quando herda a função de enformar o nosso imaginário contemporâneo a respeito do topos temático da batalha heróica sanguinária (Gladiador, Tróia, Alexandre o Grande, Trezentos...).
Essa esprectralidade reforça-lhes o enigma de onde vieram, nem lenda, nem mito ou história alguma. Onde estão as atitudes e as expressões das figuras "heróicas", típicas do chefe militar moderno individualizado[17] revestido com a patética grandiloquência das acções nobres e poderosas prescritas pelas teoria académica? Nem a recorrente cena pulverizada com os lampejos dos pormenores dum acontecimento real é visível, como em A Morte do General Wolf (1770) de Benjamin West, por exemplo, que exprime sintomaticamente um fenómeno emblemático dos tempos modernos: a transferência da devoção religiosa para o sentimento nacional.

               
VI. A ESTIGMATIZAÇÃO DA DIMENSÃO ÉPICA DA GUERRA: O PERIGO SOB A CAPA DO LÚDICO
Porque é que os artistas contemporâneos não pintam as grandes batalhas do presente ou do passado com a dimensão edificante de outrora? Para ensaiar respostas teremos que nos debruçar sobre as superestruturas ideológicas que determinam a nossa época: pós-colonial e anti-imperialista. O relativismo cultural desencantado, que perpassa os discursos intelectuais e políticos dominantes, visa aplacar qualquer sujeito eleito pelos conhecidos messianismos providenciais que inspiraram, durante séculos, os ideários heróicos das nações (ainda que alguns deles continuem espreitando, à espera de um novo ensejo).
Neste pano de fundo, são sucessivamente convocadas as chagas abertas pela arte oficial que marcou o período entre guerras. Mais: a Guerra em si mesma, sob o crivo do imaginário colectivo tecido após o segundo grande conflito mundial, tornara-se monstruosidade, identificada com imperialismo, ditadura e fascismo. Vivendo sob o fantasma do Holocausto reitera-se o paradigma da des-idealização da imagem do advento militar. Fenómeno já seminal no século XIX, com Goya - Os Fuzilamentos do 3 de Maio de 1808 (1814) - e exacerbado no século XX, por Picasso - Guernica (1937), Massacre na Coréia (1951). Nasce então o arquétipo do artista como testemunha de acusação dos horrores e absurdos da guerra, representando-a já não com a glória do fausto heróico, mas como carnificina e catástrofe. Torna-se vileza, atrocidade apocalíptica, aviso premonitório do fim da civilização.
Contudo, nas batalhas que Martinho pinta não vemos a versão "pesadelo" do conflito armado visando retratar a brutalidade da barbárie e a ignomínia da degradação humana. Ainda que resolutamente desembaraçadas do sensacionalismo dramático e heróico de outrora, as suas cenas são inócuas pelo seu carácter de pura demonstração, vitrine cénica de eventos "fabricados" em concordância com as tipologias catalogadas na rede digital. Adquirem, ao invés, um sotaque "escolar", de figura de manual de história ou de banda desenhada.
Martinho surge como aquele que pretende rememorar esse passado longínquo da pintura, constatando a actualização de um olhar já não ferido pela dimensão ideológica. Instaura, com isto, uma assertiva tomada de posição frente à História de Arte. Herdeira da tapeçaria descrita na Ilíada que conta, em curiosa situação de mise en abîme, a guerra de Tróia - fonte mítica dos modelos protocolares da conduta heróica que perpassou milénios em consecutivas remissões eruditas -, a cena de Batalha que Martinho apropria acaba por demonstrar como os antigos esquemas recuperados pelos jogos de computador são aparentemente "instrumento neutro" fora da época que o fabricou. Lembrando que não há instrumento de uma época (ou poder), mas quando muito uma utilização histórica do instrumento. Assumindo-se assim como denúncia de um ingénuo, e por isso perigoso, gesto de branqueamento ideológico das formas de representação do passado.
Estas pinturas de batalhas não oferecem modelos. Mas pintá-las significa dar-lhes, irremediavelmente, um peso, uma consistência maior perante a coisa vista em pequeno formato, que logo se desvaneceu no desenrolar do jogo, em prol da mesma coisa pintada, que permanece, ao assumir a perenidade associada ao medium. Por oposição à dinâmica cinemática do jogo, Martinho recupera o silêncio eloquente da arte monumental. Contudo, a solenidade do tema é de imediato rebaixada depois de sabermos a sua proveniência...
A indiferença ao histórico espreita para revelar a sua obstinação em seguir o destino da prestação, signo da máquina, como dispositivo de criação de realidades destinadas ao lazer, à aventura do imaginário actuante. De um ponto de vista céptico e desencantado, cínico e niilista, este empreendimento visa repensar as lógicas que subjazem a sociedade do entretenimento massificado. Neste ponto, Martinho deslinda o seu dedo acusatório porque constata a futilidade do trânsito veloz das imagens. Tanto vale este como aquele momento, este ou aquele lugar, porque carecem de qualquer outro significado que não seja o da imagem por si mesma, simulacral, exaurida da sua função moral e pedagógica. (A embriaguez da amnésia aviltra sempre a desfundamentação do presente.) Ao usar fórmulas obsoletas que, apesar de tudo, ainda ecoam no imaginário popular mais prosaico, Martinho chega a uma irónica determinação da Pintura de História: a história não é mais facto memorável e exemplar, tampouco drama ou episódio, mas sobretudo palco de encenação/ficção incessante. A guerra que Martinho pinta já não é o evento ocorrido que se pode somente ilustrar ou recriar, mas uma virtualidade que pressupõe todos os seus possíveis desenvolvimentos e configurações, términos e resoluções, em aberto.
O sujeito-jogador ao assumir de empréstimo todas as identidades - de cavaleiro, arqueiro, chefe militar, estratega - concentra em si todas as responsabilidades e todos os actos da narrativa. Este fascínio, algo nostálgico, assenta ainda na nossa ingénita aptidão para agir na história. Neles exercita-se esse campo de batalha onde se joga a sorte, se testa a pontaria ou se tenta engendrar planos de estratégia militar. A cena "recriada" não deve mais reflectir as ambiciosas fantasias dos soberanos, e sim responder ao deleite particular de cada um. O Homem contemporâneo não pode experimentar outro sentimento senão o das suas escolhas. Como que por louco acesso de soberba, pode imaginar-se assim já um qualquer general, bramindo a espada em grito de guerra, acabando de modo inconfesso por incitar as forças primárias que existem recalcadas em cada um de nós... (O visitante vê esta cegueira, encontra-se de fora, já não é jogador mas o seu juiz.)

                                                                              Bruno Marques
Doutorando em História de Arte (FCSH da UNL)
e curador independente (inter-face / Arte Contemporânea)




[1] De acordo com a formulação de 1667, de André Fébibien, historiador, arquitecto e teórico do classicismo francês.
[2] Embora, em rigor, para historiografia especializada (Ver Simon Pepper, "Battle pictures and military scenes", in The Dictionary of Art (ed. by Jane Turner) - Londres: Macmillam Publishers Limited, vol. 3, p. 387), o tema da Batalha Heróica remonte ao Renascimento, existe uma miríade de exemplos desde a Antiguidade, a saber: os painéis das vitórias militares nos cortejos triunfais; os relevos narrativos assírios, como a Batalha dos Deuses e dos Gigantes, do friso setentrional do Tesouro de Siphnos (c. 530 a. C.); os grandes relevos do arco do triunfo erigido em 81 a. D. para comemorar as vitórias de Tito; a extraordinária sequência episódica do friso em espiral da Coluna de Trajano (113 d. C.), que mostra uma série de cenas de campanha triunfantes de Trajano na Dácia (a actual Roménia); a cópia romana de uma pintura helenística que figura no mosaico pavimentar que representa a Batalha de Issus ou Batalha de Alexandre contra os Persas (séc. I a. C.), encontrado na Casa de Fauno, em Pompeia.
Cf. Francisco Calvo Serraller (Los Géneros La Pintura. - Madrid: Santillana Ediciones Generalesd, 2005, p. 9): "Aunque la definición histórica de los géneros en pintura tuvo lugar en época relativamente tardía, aproximadamente durante el siglo XVI, el origen de éstos, sin embargo, permanece íntimamente ligado a la propia invención del arte occidental en la antigua Grecia."
[3] Nas duas primeiras séries citadas, o recurso a imagens captadas pelas câmaras de video-vigilância surge, no percurso de Martinho Costa, não apenas como um momento primeiro e decisivo de mediação com esta realidade urbana, como também um modo de ajustar contas com os suportes que a filtram. Com esse gesto, Martinho consegue converter a entropia que advém da mesmidade do quotidiano num lugar remoto, já fossilizado em e pela imagem, encerrada assim para sempre no seu próprio tempo. Por outras palavras, o ritmo desenfreado da vida resulta contrariado pelo congelamento intrínseco ao medium da pintura.
[4] Na série que parte do jogo de computador SimCity Martinho, tematizando a urbanística como ciência da cidade, pinta o urbano como não-lugar (agora "materializado" virtualmente) e instrumento prospectivo da vida social actual. Mediante um aturado inventário averigua a relação entre as células (edifícios-tipo)  e sua co-integração na teia urbana como todo contextual abstracto. Inquire assim o seu carácter fortemente tipológico, em que as formas atendem a uma função e uma espacialidade racionalmente calculadas, celebrando a potencialidade dos jogos de computador enquanto concretização dos anseios (históricos) utópicos da cidade como microcosmos simulado de um macro-cosmos a planear e a construir.
[5] "Gera-se a partir de aqui uma ficção meta-histórica que se materializa em imagens altamente sedutoras. O poder do estético manifesta-se assim, fazendo entrar o jogador num processo de alienação física, mas também da sua própria consciência histórica." (Martinho Costa, in texto inédito cedido pelo artista, 2007)
[6] Para Martinho as imagens aqui transplantadas para pintura resultam, num dos seus estratos simbólicos, na "representação de uma dupla violência: a violência simulada da guerra, numa época particularmente violenta da nossa historia ocidental; e a violentação da verdade histórica que se produz quando se transforma essa barbárie numa coisa bela. Em última análise trata-se de trabalhar o belo enquanto provocação." (Martinho Costa, in texto inédito cedido pelo artista, 2007)
[7] Como na Batalha de Hastings que figura na Tapeçaria de Bayuex (c. 1073-83). Uma guarnição parietal bordada de c. 70 metros de comprimento, narrando a invasão da Inglaterra por Guilherme o Conquistador. Uma animação convulsiva registada nos manuscritos ingleses: espécie de historieta anglo-saxónica, que relata a emocionante conquista de Inglaterra pelos Normanos, com  economia de meios e encanto. Numa das cenas específicas, os irmãos do rei inglês Harold são dizimados por soldados normandos cuja parte inferior está repleta de soldados mortos e duma diversidade de armas e armaduras abandonadas.
[8] Ver as pilhas de corpos entre os destroços das barricadas em A Liberdade guia o povo (1830) de Eugène Delacroix.
[9] Veja-se a morte suspensa por alguns momentos antes do golpe fatal, tanto no Dia do Massacre de S. Bartolomeu (1572-73) de Giorgio Vasari como em Carga de cavalaria guiada por Murat na batalha de Abukir (1806) de Antoine-Jean Gros.
[10] Ver Árabes em Escaramuças nas Montanhas (1863) de Delacroix.
[11] Ao contrário do que acontece em A Batalha de Taillebourg (1835/7) de Delacroix dominado por um fundo de penumbra quase opaco. Ver também a fumaça negra e densa da guerra em Skimish from Tatars (1867) de Masksymiliam Gierymski.
[12] De modo complementar, Martinho apresenta uma secção de soldados individualizados, em pinturas de pequeno formato, em situação de combate: catálogo de fórmulas ressoantes nos esquemas ainda hoje reutilizados (nas coreografias do cinema, da BD e nos jogos para PC), mas aqui desprovidos da carga exemplar, por já não serem protagonizados por seres superiores, heróis memoriais ou lendários, mas por figuras anónimas, protótipos triviais de bonecos de jogo.
[13] Ainda que em rigor não se trate de uma batalha, encontramos num dos mais célebres frescos de Giotto, O Beijo de Judas (c. 1305-06), o arquétipo iconográfico-compositivo do aglomerado do conflito armado. Nesta obra, Giotto faz decorrer a acção ao nível (do plano) dos nossos olhos, resultando numa integibilidade extremamente eficaz. Evidenciando uma capacidade espantosa em organizar o foco de uma cena em torno de uma imagem central entre a massa compacta e indistinta de capacetes. Veja-se outros exemplos paradigmáticos como O Juramento dos Horácios (1784) e As Sabinas que interrompem o combate entre Romanos e Sabinos (1794-99) de Jacques-Louis David. Em La rendición de Breda (Las Lanzas), pintada em 1635, por Velázquez, existe um palco virado para nós, onde os protagonistas nos olham nos olhos, posando para o espectador.
[14] A Batalha de Issus (1529) de Albreecht Altdorfer apresenta a visão panorâmica que serve para tentar seguir as descrições dos antigos quanto ao número e tipo de combatentes, o que resulta nos dois protagonistas se perderem no formigueiro dos seus exércitos. Nesta seminal vocação paisagística, a cavalaria, à direita, mostra verdadeiros combates, enquanto os aspectos geográficos, logísticos e políticos da campanha foram objecto de minuciosa atenção. Modelo que ressoa, ainda que com a variante do formato (já não vertical), na extensa e esguia representação da Batalha de Brodino (1912) de Franz Roubaud
[15] Se por um lado o jogo de computador oblitera as determinações essenciais consignadas à sua razão de ser da imagem da Batalha Heróica - (1) comemoração de um celebrado acontecimento prescrito pela história de um reino/Estado ou pela literatura mitológica/clássica, (2) a narrativa ilustrativa do evento e a (3) veiculação de uma enobrecida mensagem moral (invarialvelmente votada à valentia guerreira, à argúcia militar ou ao espírito patriótico) -, por outro exacerba-a para lá dos seus limites, quando lhe confere uma grande amplitude de imaginação à qual esta fora sempre susceptível, pelo extenso alcance dos seus efeitos e o domínio de liberdade que deu sempre ao pintor.
[16] Não existem os gestos excessivos, bocas gritantes, olhos esbugalhados, apenas a rigidez desabitada das marionetas uniformizadas. A figura aparece sempre fechada num mal disfarçado esquema geométrico que o aprisiona e aniquila qualquer tentativa de autenticidade simulada. São, assim, bonecos desapossados de qualquer individuação. Peças de xadrez. Entidades numéricas. Agrupadas, configuram situações informes, onde os limites entre o indivíduo e o grupo são obliteradas em nome da agudização do organismo totalizante, como alegoria da abstracta máquina de guerra.
[17] Ver, por exemplo, A Batalha de San Romano (c. 1450) de Paolo Uccello, mostrando o chefe das tropas florentinas, Noccolò da Torentino, montando num cavalo branco durante a batalha; ou em Carga de cavalaria guiada por Murat na batalha de Abukir (1806) de Antoine-Jean Gros. Mais incisiva é A Morte do General Wolf  (1770) de Benjamin West, seminal do tema arquétipo do herói morto no campo da batalha, sobejamente "replicado" em inúmeras obras como, a título de exemplo, A Morte de Pierson (1782-4) de John Singleton Copley, onde se regista, com todo o brilho, o heroísmo do jovem oficial ao serviço de uma nação cujas bandeiras se agitam patrioticamente por cima das figuras.